segunda-feira, 1 de julho de 2013

Plano Real faz 19 anos com tomate 1.716% mais caro


Preço das tarifas de ônibus urbano foi outro grande vilão, com alta de 684%; em São Paulo, valor subiu de R$ 0,50 em 1994 para R$ 3 atualmente 

30 de junho de 2013 | 22h 58

Alana Martins e Juliana Karpinski, especial para o Estado
SÃO PAULO - Famoso por ter conquistado a tão sonhada estabilização da economia brasileira, o Plano Real completa 19 anos nesta segunda-feira, dia 1. Criado em 1994 pela equipe do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, durante o governo Itamar Franco, a nova moeda conseguiu o que vários outros planos econômicos não alcançaram: debelar a hiperinflação.
Segundo o economista da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Leonardo Weller, especialista em História Econômica, o êxito do Real se deve a três questões principais: liberalização comercial, câmbio estável e desindexação.
A liberalização comercial foi basicamente uma grande abertura do país ao capital estrangeiro. A medida veio acompanhada de uma taxa de câmbio estável, aumentou a concorrência aos produtos brasileiros e pressionou os preços para baixo.
Já a desindexação da economia consistiu em reduzir mecanismos de repasse automático da inflação, como os gatilhos salariais, que não permitiam que os preços se estabilizassem.
A inflação chegou a 916,46% no ano de 1994 e foi estabilizada em níveis baixos nos anos seguintes, mas não deixou de existir.
Entre 1994 e 2013, a taxa acumulada, segundo o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), foi de 332,33%. Alguns produtos, como o tomate, que se causou polêmica nas listas de compras no início deste ano, está no topo da lista dos produtos que mais subiram de preço: segundo o IBGE, o aumento acumulado é de 1.716,2% nos últimos 19 anos.
O preço das tarifas de ônibus urbano foi outro grande vilão, com alta de 684%. Em São Paulo, a tarifa subiu de R$ 0,50 em 1994 para R$ 3 atualmente.
Nem um dos componentes principais da dieta dos brasileiros subiu menos que a inflação. O feijão-carioca teve variação de 785,9% desde a criação do plano Real. Neste período, o salário mínimo subiu de R$ 64,79 para R$ 678, uma elevação de 1046,45%. Para Weller, mesmo com as recentes altas da inflação, o país não corre mais o risco de passar por uma nova hiperinflação. Isso porque a economia do País está mais inserida no conceito de economia de mercado.
Entretanto, o economista assinala que os protestos que têm tomado ruas recentemente são o primeiro sintoma de perda da "ilusão monetária".
"As pessoas perceberam que o ganho do salário nominal (sem descontar a inflação) nos últimos anos está sendo corroído pela inflação. Houve uma queda no salário real. E isso foi percebido rapidamente", afirma.

domingo, 30 de junho de 2013

Sanduíche


30 de junho de 2013 | 2h 15

AMIR KHAIR - O Estado de S.Paulo
O Brasil é a 7.ª economia mundial e ocupa a 85.ª posição no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre 187 países. Esse índice procura captar a situação social de cada país, através da média de três fatores: educação (anos médios de estudos), saúde (expectativa de vida) e Produto Interno Bruto per capita.
Essa distorção é caldo de cultura para a elevação da temperatura social que explode nas ruas e praças de todo o País. Tem saída?
Com a explosão social, a pressão por ampliação de atendimento com melhor qualidade nas áreas sociais ganhou relevância no debate público. Aí surge a pergunta: quanto custará isso e de onde sairão os recursos. Tem-se agora um sanduíche a comprimir os governos federal, estadual e municipal, que amargam arrecadação fraca por causa do baixo crescimento, e elevação das despesas de custeio para atender a demanda popular.
Na quinta-feira o jornal Valor Econômico deu em manchete: "Demanda das ruas já tem custo de R$ 115 bi por ano". É uma primeira estimativa de despesas com educação, saúde e transporte coletivo considerando apenas os projetos de lei em discussão no Congresso, que afetam o governo federal, sem considerar os custos para Estados e municípios.
A educação consumiu R$ 90,6 bilhões em 2012, ou 2,06% do PIB, num total de 6,2% do PIB gastos pela União, Estados e municípios. A proposta em discussão prevê atingir 10% do PIB. Caso seja mantida a participação da União de 33,2% na despesa, seriam necessários mais R$ 71 bilhões.
Os Estados e municípios, responsáveis por 66,8% da despesa, teriam de passar dos atuais R$ 182 bilhões para R$ 325 bilhões, com acréscimo de R$ 143 bilhões (!).
Há dois projetos para a área da saúde, que preveem gastar 10% da receita corrente bruta da União. Em 2012, as despesas foram 6,9% dessa receita. Para passar a 10%, seriam necessários mais R$ 40 bilhões. No transporte está previsto, por enquanto, apenas a desoneração do PIS e Cofins dos insumos, principalmente, do diesel para os ônibus e energia elétrica para trens e metrô. Isso daria R$ 4 bilhões por ano.
Resumindo para o governo federal: educação, R$ 71 bilhões; saúde, R$ 40 bilhões; transporte, R$ 4 bilhões. Total: R$ 115 bilhões. Para Estados e municípios, R$ 143 bilhões só para educação.
A área mais nevrálgica e explosiva é a da mobilidade urbana, que piorou sensivelmente devido a: a) estímulo à produção de automóveis via redução do IPI; b) crescimento explosivo da classe média com a política de melhoria na distribuição de renda, especialmente pelo forte crescimento do salário mínimo e; c) congelamento por mais de sete anos nos preços da gasolina, que vem sendo subsidiada pela Petrobrás.
O transporte coletivo foi deixado para segundo plano, pois a visão predominante priorizou o curto prazo para o crescimento econômico, dado o efeito multiplicador elevado da indústria automobilística.
O melhor para o País teria sido priorizar o transporte de massa para desafogar as cidades, acelerar os percursos, reduzir acidentes de trânsito e diminuir a poluição de gases de combustão dos automóveis. A gasolina seria majorada pela Cide Combustíveis, cujos recursos seriam aportados aos investimentos necessários à ampliação dos metrôs, trens e frota de ônibus.
Agora, com toda certeza, os valores para o transporte coletivo para reduzir a tarifa e investir em equipamento e viário urbano deverão alcançar mais de uma centena de bilhão de reais por ano. É a explosão em marcha das despesas de custeio.
De onde sairiam esses recursos? Para educação estão previstos 75% dos royalties do petróleo. Para saúde, 25% desses royalties. Não dá para saber se serão suficientes.
Para o transporte, se não sobrar nada proveniente do petróleo, só vejo a elevação via Cide da gasolina, que foi zerada. É o transporte individual financiando o transporte coletivo.
Fato é que profunda reviravolta irá ocorrer na composição das despesas públicas com avanço principalmente nas despesas de custeio, onde se situa a área social. Os investimentos feitos diretamente pelo setor público, tendem, assim, a recuar.
Novos recursos. Creio que os novos recursos, independentes do petróleo e da Cide, só poderão sair do concurso de três ações: a) redução da Selic para 5%, como nos países emergentes; b) crescimento econômico de 5%, como nos países emergentes e; c) eficaz gestão das despesas públicas. Trato aqui só das duas ações: Selic e crescimento. A gestão, que pode reduzir despesas, será tratada no próximo artigo.
Selic. Devido à Selic muito acima do nível internacional por décadas, tem-se despesa com juros no governo federal de R$ 16 bilhões por mês (média do primeiro trimestre), ou R$ 192 bilhões por ano (!). Isso sem contar o custo de carregamento das reservas internacionais e o rombo causado pela bomba de sucção de dólares como resultado das aplicações dos especuladores internacionais nos títulos do governo federal, agora isentos do IOF. O estrago é monumental!
Defendo a imediata suspensão da emissão de títulos para saldar o déficit fiscal, passando o Tesouro Nacional a demandar ao Banco Central a emissão monetária para isso, como vem fazendo os Estados Unidos, Europa e Japão, entre outros países, que estão injetando liquidez em suas economias para desvalorizar suas moedas e, assim, ganhar musculatura para competir no mercado externo.
A reação imediata a essa proposta é o aumento da inflação. De fato, num primeiro momento, é isso que ocorre, mas a forte disputa internacional, aliada aos altos preços internos, abre espaço suficiente para acomodar a redução em dólares dos bens importados. Quem opera no mercado internacional sabe que os preços se amoldam aos mercados para os quais se destinam.
Vale, ainda, frisar que entre 2011 e 2012 ocorreu desvalorização cambial de 17,4% e a inflação recuou de 6,5% para 5,8%, apesar do choque agrícola, que contaminou o preço dos alimentos. O câmbio já pulou para R$ 2,20, desvalorizando-se 12,2% sobre 2012 e a inflação deve se manter nas vizinhanças de 5,8%.
Crescimento. Nada melhor para as finanças públicas do que o crescimento econômico. É dele que depende a arrecadação pública. Se baixo, como os atuais 2% ao ano, a arrecadação mal acompanha o crescimento do PIB, pois cresce a inadimplência tributária pela piora das finanças das pessoas e das empresas. Com crescimento de 4% a 5%, a arrecadação tende a se situar em dois a três pontos acima do PIB pela redução da inadimplência. Isso pode dar uma arrecadação extra de R$ 50 bilhões por ano.
Tenho dúvida se o governo, em resposta aos novos desafios, consiga se desamarrar da política ultrapassada de se subordinar ao medo do fantasma da inflação, e siga na direção de retomar o crescimento, que é indispensável para manter o bom nível de emprego e de arrecadação, e reduza suas despesas com juros desperdiçados pela alta Selic.
Felizmente tem saída para os desafios postos pela demanda popular, e ela depende exclusivamente de medidas internas, pois potencial para isso tem o País.

Aberto para reforma (entrevista Alysson Mascaro)


Mas não adianta rearranjar as peças sem mudar o jogo, diz filósofo do direito

29 de junho de 2013 | 15h 21

Juliana Sayuri
Da perplexidade das semanas passadas, agitadas com as manifestações nas ruas, vieram dias marcados por desengavetamento de propostas. A presidente Dilma Rousseff arrematou a sexta-feira, 21, com um esperado discurso. E começou a segunda, 24, propondo a discussão sobre um plebiscito para convocação de uma Constituinte dedicada à reforma política. Depois, começou a tricotar com Legislativo e Judiciário um plebiscito para indicar o que a sociedade gostaria de mudar no sistema político do País. A "crise", antes administrativa, passou a institucional.
Alysson Mascaro, jurista e filósofo do Direito - Juliana Sayuri/Estadão
Juliana Sayuri/Estadão
Alysson Mascaro, jurista e filósofo do Direito
Depois da marcante conquista dos 20 centavos, vieram nos dias seguintes martelos "inesperados" em propostas que há tempos tramitavam no limbo: o Senado aprovou o projeto que transforma a corrupção em crime hediondo; a Câmara derrubou a PEC 37, barrou R$ 43 milhões que seriam destinados à Copa do Mundo e das Confederações e aprovou o projeto que destina 75% dos royalties do petróleo à educação e 25% à saúde; a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania aprovou o fim do voto secreto para cassação de mandatos; o STF decretou, ineditamente na redemocratização, a prisão imediata de um parlamentar condenado por formação de quadrilha e peculato em 2010.
Em condições normais de temperatura e pressão, talvez essas propostas continuassem na gaveta. "Mas não há tempo ‘natural’ na política. Há disputas ideológicas e de interesses, forças, pressões, lutas que travam, possibilitam, constroem, destroem e ensejam a ação político-jurídica. Mudanças advêm das correlações de força sociais que determinam avanços e retrocessos. Portanto, não é surpreendente que as manifestações tenham suscitado essas questões", analisa o jurista e filósofo do direito Alysson Mascaro, professor da Faculdade de Direito da USP e da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
"A sociedade deve tomar nas mãos o próprio destino. Para discutir uma reforma política, os instrumentos do plebiscito e do referendo são valiosos", considera Mascaro, autor de Estado e Forma Política (Boitempo). "Mas, se a reforma for simplesmente direcionada para questões eleitorais, podemos ver o Brasil trocar um sistema com dificuldades por outro com novas dificuldades. Não adianta fazer um rearranjo de peças e até de algumas regras, se o jogo continua o mesmo."
Enfant terrible e autodeclarado "único marxista" no tradicional Largo São Francisco, Mascaro conversou com o Aliás em entrevista exclusiva.
Após semanas de manifestações, veio à baila um plebiscito para indicar o que a sociedade gostaria de mudar no sistema político brasileiro. O que é preciso mudar? A reforma política é necessária atualmente?
Alysson Mascaro-Essa discussão estava adormecida, ou ao menos esquecida em banho-maria. Não porque fosse desconhecida, mas o contexto econômico, político e social não mostrava força suficiente para destravá-la. Nas últimas semanas, as manifestações populares provocaram um impasse político que, por sua vez, levou à questão da reforma política. A simples proposição dessa ideia tem mérito e nos dá horizonte para uma primeira reflexão. A discussão enfrenta um impasse único, que outros tipos de reforma não enfrentam: a reforma política impactaria diretamente na classe interessada em sua estruturação. Isto é, mexe com a política – e com os políticos. Por muito tempo se imaginou que fosse possível realizar uma reforma com comprometimento do Congresso para abrir, democratizar e melhorar o espaço político do País. Mas isso vem revelando dificuldades imensas para mudar a política por dentro. Por isso, é, sim, necessário um elemento externo que force a classe política a aprimorar o sistema. Reformar política só pelos políticos seria manter os mesmos padrões que temos, apenas com alguns descontos. E que elemento externo seria esse? Poderia ser muito nocivo se viesse, por exemplo, de um Executivo ditatorial ou de uma força autoritária – o que não é o caso. Por outro lado, pode ser positivo e legítimo se vier do povo. Ao ser levado à opinião popular, o impasse político do Brasil encontra uma alternativa para a resolução desses problemas intrínsecos.
De que modo a reforma deveria ser feita?
Alysson Mascaro-Governo e aliados ainda têm dificuldade em identificar qual o melhor caminho para defender os seus interesses. As oposições tampouco têm isso definido. Não há um consenso, pois não há um interesse homogêneo, que permita à situação e à oposição clarificar suas ideias. Não sabem dizer se a política lhes interessa assim ou assado. Muitas vezes, não há correspondência entre o interesse do Legislativo e do Executivo dentro de um mesmo partido, de situação ou de oposição. É difícil delinear uma reforma assim. O que devemos propor? Um plebiscito ou um referendo? Isso é importante saber, pois a partir desses instrumentos podemos compreender a abrangência dessa reforma. E como fazer uma mudança de fora para dentro? Essa é a questão fundamental. Os instrumentos do plebiscito e do referendo são valiosos. Alguns têm medo de que a sociedade se "acostume" com isso, mas penso que é necessário que a sociedade tome nas mãos o próprio destino. Nesse sentido, o Brasil está relativamente atrasado em relação a outros países da América do Sul, que já experimentaram essa força mais pulsante das massas – e são acusados por muitos de fazer um populismo político. Não concordo com essa acusação. Precisamos contar com a dinâmica viva da própria sociedade para definir o "como fazer" e o "que fazer" para redirecionar a política.
O que é preciso para definir esses pontos?
Alysson Mascaro-No "como fazer", é preciso discutir se as reformas serão chanceladas, no essencial, por consultas populares ou se terão palavra final no Congresso. A depender de como se dará esse itinerário, forças políticas e sociais distintas entrarão em disputa – e aí seria outra discussão, que ainda não podemos fazer. E no "que fazer", é preciso definir se a reforma tratará apenas de questões eleitorais. Será só um novo arranjo para a disputa de cargos? Ou haverá um reposicionamento da relação do capital com a política, discutindo, por exemplo, o financiamento de campanha? Se a reforma for direcionada para questões eleitorais, trocaremos um sistema com dificuldades por outro sistema com novas dificuldades. Não adianta fazer um rearranjo de peças e até de algumas regras do jogo se o jogo continua o mesmo.
Ex-presidente do Supremo, Ayres Britto disse que um plebiscito pode fazer com que a sociedade aprove propostas que acabariam desvirtuadas no Congresso. Seria um ‘cheque em branco’ aos parlamentares.
Alysson Mascaro-Sim, há o risco de que os plebiscitos acabem mudados no Congresso. Mas, sem eles, o próprio Congresso poderia fazer exatamente o mesmo, e de modo direto, sem mínimas referências externas. A participação popular, nesse caso, é só positiva. A mudança normativa se faz nas arenas do poder, mas a pressão popular altera a disputa do mérito dessas questões. Essa influência, ainda que relativa, é saudável, pois pode acelerar os procedimentos do Estado. Ao se verem obrigados a responder às demandas do povo num nível imediato e próximo, os governantes mudam sua relação com a sociedade. Até agora, tínhamos uma estrutura tendente à tecnocracia, uma administração a conta-gotas que distribui benesses cá e lá. Não dá mais para ser assim. Estamos diante de dois conflitos. Um, contra a ordem do sistema político. Dois, nas contradições internas das manifestações, que começaram com pautas progressistas e em certo momento foram confrontadas com ideias conservadoras dos que se aglutinaram aos movimentos. O conflito bate às portas da política brasileira. É um momento de decisão.
Que questões devem compor o plebiscito?
Alysson Mascaro-Essa é a indagação imediata. Mas ainda é preciso amadurecer a discussão para oferecer perguntas que possam levar a uma mudança progressista. A meu ver, há duas questões sensíveis: a relação do capital com a política – o financiamento de campanha seria um dos tópicos; e a democratização da mídia. Se esses pontos não forem incluídos, todas as demais perguntas serão técnicas. Esse plebiscito deve nos trazer respostas maiúsculas.
Segundo a proposta, um plebiscito determinaria os itens essenciais na reforma política em 45 dias. E até 5 de outubro o texto deveria passar no Congresso para valer nas eleições de 2014. Como analisa esse timing?
Alysson Mascaro-É possível fazer consultas populares rapidamente. No Brasil, temos instrumentos sofisticados para isso. A questão nem é tanto o realismo do tempo, mas saber se as forças sociais amadureceram a ponto de terem claros seus interesses. Em outras palavras: pedimos reforma, mas já sabemos que tipo de reforma queremos? Daria tempo para dar condições jurídicas de mudança na legislação eleitoral para 2014, mas ainda não dá para dizer no que isso impactará. Há vários horizontes possíveis.
Nos últimos dias, também se discutiu muito a Constituição.
Alysson Mascaro-Tendemos a colocar a Constituição num pedestal, como a solução do País. Mas a Constituição de 1988, empreendida no ensejo de uma abertura relativamente progressista, no período pós-ditadura, tem um escopo político misto, com elementos progressistas e elementos conservadores. Privilegia o capital e ao mesmo tempo dá garantias sociais. Há críticas e elogios à Constituição, pois todos se sentem protegidos e, ao mesmo tempo, desconfortáveis com ela. É um pacto de modernização conservadora. As pautas atuais, como o bem-estar social e as questões eleitorais, não estão nos limites extremos da Constituição. Isto é, poderiam ser absorvidas dentro das formas jurídicas presentes. Em tempos progressistas, podemos até vislumbrar uma mudança constitucional para melhor. Em tempos neoliberais, como nos últimos 25 anos, vimos a Constituição quase sempre mudar para pior. E agora precisamos descobrir em qual momento estamos. Queremos mais participação popular? Ou uma total tecnicização e esterilização da política? Nesse sentido, a Constituição deixa de ser um espaço de resolução para se tornar mais uma das questões.
Ainda nessa semana, foi aprovada a proposta que torna a corrupção um crime hediondo.
Alysson Mascaro-As tentativas de tratar da corrupção como bandeira política ou como instrumento a ser resolvido juridicamente são problemáticas. As avaliações sobre a corrupção são tomadas, quase sempre, a partir de extremos: ou ela é exclusiva dos atuais políticos investidos em seus cargos (de tal sorte que toda oposição acusa toda situação); ou ela é naturalizada, como se todo ser humano e toda organização social não prestassem. São leituras insuficientes, e até ingênuas. O poder, haurido do capital, é corruptor, pois de fato o dinheiro compra e influencia posições, direcionamentos e interesses da política. Assim, soluções jurídicas à corrupção não podem ser perfeitas.
Presidente do Senado, Renan Calheiros disse que devemos aproveitar esse momento para andar com matérias que não tiveram condições de andar em ‘circunstâncias normais’. Não seria o contrário? Essas questões não estão sendo desengavetadas justamente por vivermos circunstâncias ‘anormais’?
Alysson Mascaro-Não há tempo "natural" no direito e na política. Há disputas ideológicas e de interesses, forças, pressões, lutas que travam, possibilitam, constroem, destroem e ensejam a ação político-jurídica. Mudanças positivas e negativas, na confecção da política e do direito, nunca advêm apenas do aspecto interno: são as correlações de força sociais que determinam avanços e retrocessos. Portanto, não é surpreendente que as manifestações tenham suscitado essas questões. A política é um elemento necessário e, ao mesmo tempo, contraditório diante dos anseios sociais de diversas classes e movimentos, com interesses diversos e até opostos. Não há estabilidade política. E os momentos de crise não são a exceção, são a regra. Nas sociedades contemporâneas, a política é essencialmente conflituosa. O miraculoso é observar como tantas sociedades capitalistas encontram momentos de certa pacificação social, dentro de um quadro de injustiças e repressões. Como é possível que as multidões brasileiras, diariamente humilhadas e exploradas, não tenham se manifestado antes? E tenham passado anos num certo torpor? Como até agora não vimos revoltas e irrupções sociais suficientes para contestar o nervo central do sistema?
Como responderia a essas questões?
Alysson Mascaro-O importante é destravar a vida política. Pensar na relação entre a mudança das estruturas políticas e as demandas das lutas sociais. Ou será que o início dessa discussão, com razões progressistas, poderá ser capturado por uma atmosfera ideológica regressista? Afinal, isso passa pelo campo ideológico, nos valores, expectativas e esperanças da sociedade. A política administra o "estoque" de sonhos, desejos e anseios da sociedade. Às vezes faz repressões desses desejos, outras conta com o silêncio de impulsos para a transformação. As manifestações atuais são relevantes, mas não estão atacando a estrutura. É revelador que as pessoas destinem seus impulsos de agressividade e de ódio à arena política estatal, mas quase nunca ao campo econômico e ao próprio sistema capitalista. Por exemplo, ao criticar o transporte público, voltamos os olhos para o papel do Estado, mas esquecemos das empresas e dos empresários que operam as máquinas do transporte público. As pessoas estão mirando um horizonte de conquistas imediatas, talvez porque compreendam os limites da política e dos governantes. No mais das vezes, os manifestantes querem riscar do mapa as estruturas políticas impostas, mas, sem propor alternativas, tendem a substituí-las por estruturas similares. No fim, com o estoque de utopias que temos agora, se nos fosse dada a possibilidade de reescrever essa história, escreveríamos o mesmo que já lemos antes. Não temos tinta nas mãos para escrever coisas novas nessas páginas.
Mas é possível mudar o mundo sem tomar o poder? Sem passar pelo Estado?
Alysson Mascaro-A transformação social passa pelo Estado, mas não só pelo Estado. É preciso pensar que o coração do sistema capitalista é a própria lógica capitalista. Ao concentrarmos a transformação social no nível político, não atacamos o coração. E os atuais movimentos estão mirando outros órgãos, mas não o coração de um sistema que já está com os nervos expostos. É preciso ter realismo, o que não significa desesperança. Temos esperança em algo próximo, imediato e cosmético. Mas é preciso reservar esperança para batalhas maiores. É um pessimismo otimista. Muitas manifestações tendem a ser críticas ao presente, mas se acomodam a esse mesmo presente. Precisamos de um passo além, um segundo ato.
A reforma política pode mudar a cultura política dos eleitos e dos eleitores?
Alysson Mascaro-Sim, na medida em que a reforma política constrange institucionalmente os próprios mandatários. Mas a mudança fundamental no nível político se dá com relações sociais distintas que influenciam o Estado e a sociedade. As vozes das ruas ecoam no nível político, e podem ser responsáveis pelas mudanças dos governantes. E essas vozes não devem se calar.