domingo, 9 de setembro de 2012

Brigas judiciais atrasam obras de norte a sul do País


RENÉE PEREIRA - O Estado de S.Paulo
Da conturbada Altamira, no Pará, passando pela pequena Piancó, no sertão da Paraíba, até a florida Joinville, em Santa Catarina, são mais de 5 mil quilômetros de distância. Cada uma está localizada numa região do País. Tem características físicas, culturais e econômicas distintas. Nos últimos tempos, porém, conviveram com um mesmo dilema: a dificuldade para conseguir tirar um investimento do papel.
Os problemas variam de impactos em aldeias indígenas, mudança no visual da região, espécies em extinção até pegadas de dinossauros. Independentemente da queixa, tudo vira briga judicial ou embargo nos órgãos ambientais - fato que explica, em parte, por que os investimentos não decolam no País. "É o chamado custo Brasil. Quanto maior o risco de judicialização, mais o investidor se afasta", avalia a economista Elena Landau.
As ações judiciais, embora reflitam o direito da democracia, podem atrasar e encarecer uma obra essencial para a população. A Hidrelétrica de Belo Monte, na região de Altamira, é um ícone de como pode ser árdua a missão de levantar um empreendimento no País. Depois de 35 anos de muitas idas e vindas, a terceira maior usina do mundo foi autorizada. Começou a ser erguida em junho de 2011 e já passou por quatro paradas, que somam 35 dias.
A última delas foi decorrente de uma ação judicial, que deixou 14 mil trabalhadores (diretos e indiretos) parados. A liminar foi cassada cinco dias depois. Mas a usina, de R$ 26 bilhões, não está imune a novas decisões. Outros 14 processos em andamento na Justiça podem parar a hidrelétrica (11.233 MW) a qualquer momento. Além do licenciamento ambiental, as ações questionam convênios feitos pelo grupo Eletrobrás e a postura do servidor do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) que aceitou o estudo de impacto ambiental.
A Hidrelétrica de Teles Pires, entre Mato Grosso e Pará, que já foi paralisada por decisão judicial, segue o mesmo caminho: tem 12 ações em andamento na Justiça contra as obras. "O Judiciário, às vezes, confunde o princípio da precaução com paralisação. Em qualquer questionamento para tudo", diz o advogado Floriano de Azevedo Marques Neto, do escritório Manesco, Ramirez, Perez, Azevedo Marques.
Para ele, o resultado pode ser a inviabilidade do investimento, o atraso e o aumento do custo do projeto. Os empreendedores, normalmente, embutem nos preços das obras todos esses riscos. "Mas, às vezes, a realidade extrapola as provisões feitas", completa o advogado Fernando Marcondes, da L.O. Batista. Por esse motivo, muitos investidores não aceitam entrar num negócio com taxa baixa de retorno.
No último pacote de concessão, lançado no mês passado, o governo calculou uma taxa de cerca de 6% como adequada para os projetos de rodovias e ferrovias, uma vez que a Selic (taxa básica de juros) está no menor nível da história - 7,5% ao ano. Mas os riscos de uma obra de infraestrutura vão muito além dos juros. No meio do caminho, podem surgir espécies raras, como a rã de 2 centímetros que parou o Arco Rodoviário do Rio de Janeiro, ou pegadas de dinossauros.
Foi o que ocorreu com a pavimentação e construção das BRs 426 e 434, no sertão da Paraíba, incluídas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Em julho, o Ministério Público Federal conseguiu suspender as obras para proteger sítios arqueológicos existentes. Segundo a ação judicial, foram destruídos "2,5 quilômetros de rochas riquíssimas em materiais paleontológicos, algumas com registros de pegadas de dinossauros".
O procurador da República Bruno Barros de Assunção afirma que o MPF não é contra a obra, mas argumenta que precisa ser feita de forma responsável e com acompanhamento técnico. Nesse caso, o projeto está sob responsabilidade do Departamento Nacional de Infraestrutura Rodoviária (Dnit), que ainda não conseguiu retomar as obras, consideradas de relevância social por causa das dificuldades do sertanejo para se locomover até grandes centros urbanos.
A BR-426, que vai ligar as cidades de Piancó e Santana dos Garrotes, começou a ser construída no fim de 2008; a BR-434, de Uiraúna a Poço Dantas, em 2010. Embora sejam pequenas, as obras não têm horizonte para serem concluídas. "Paralisar uma obra não é como dar um 'pause' num filme. Há mudanças de custos da matéria-prima e no tempo de mobilização do canteiro de obras. Na retomada, às vezes o empreendedor tem de voltar uma fase de construção", diz Eduardo Damião Gonçalves, sócio do escritório Mattos Filho, especialista na área ambiental.
Na Hidrelétrica de Cubatão, em Joinville (SC), as obras ainda não foram iniciadas, mas os prejuízos não são menores. A usina, de 50 MW, foi concedida em 1996 e chegou a ter as licenças prévia e de instalação, cassadas em seguida. "Durante esse tempo, não houve forma para tirar o projeto do papel. A saída foi mudar o projeto", diz José Antunes Sobrinho, vice-presidente da Engevix, sócia da usina.
Segundo ele, embora esteja numa área de mata reflorestada e não afete espécies em extinção, a usina será subterrânea para não prejudicar o visual da região, uma das críticas da ONGs contrárias a obra. Serão 8 km de túneis e 3 km² de lago. Além de um novo licenciamento, o empreendedor terá de resolver outra questão essencial para a viabilidade da obra: negociar a extensão da concessão da usina, já que se passou metade do prazo sem ter gerado um único MW.

De sitiante a semeador de florestas


TÂNIA RABELLO - O Estado de S.Paulo
Há quatro anos, em uma pequena parcela do Sítio Duas Cachoeiras, de 30 hectares, em Amparo (SP), região de Campinas, despontavam, numa área que antes era pasto degradado, mudinhas de árvores nativas recém-plantadas. As espécies que compuseram o reflorestamento da vez - assim como das várias outras vezes - foram escolhidas de maneira curiosa: com o Cartório de Registro de Imóveis de Amparo, em antigas escrituras de terras da região. O proprietário do sítio, Guaraci Diniz Júnior, lembra da busca, feita em parceria com o historiador Roberto Pastana Teixeira Lima. "Acidentes naturais, como rios e montanhas, eram usados para demarcar o limite das propriedades", comenta. "E também árvores."
Guaraci Diniz criou a primeira RPPN de Amparo (SP) - Marcio Fernandes/AE
Marcio Fernandes/AE
Guaraci Diniz criou a primeira RPPN de Amparo (SP)
Assim, sabia-se que, do angico branco, contando-se cem passos, até a margem do Rio Camanducaia, tinha-se parte do limite de uma fazenda. De lá, virava-se à esquerda, chegando ao jequitibá-rosa, próximo à paineira. A candeia ficava ali, encostada numa grande rocha oval, e também servia como ponto de demarcação de limites. "Detectamos, nesses registros, cerca de cem espécies de árvores ocorrentes na vegetação da região", diz Diniz, que pôde recompor o histórico florestal de uma área bastante desmatada.
As mudas nativas Diniz vem obtendo, nos 25 anos em que já faz esse trabalho de recomposição florestal, de várias maneiras. Por meio de um pequeno viveiro próprio, e também do Consórcio das Bacias dos Rios Piracicaba-Capivari-Jundiaí; de parcerias com viveiristas e até com empresários interessados em neutralizar as emissões de carbono, financiando o plantio de árvores nativas dentro do Programa Estadual de Microbacias da Secretaria de Agricultura paulista.
O plantio e a manutenção das mudinhas plantadas há quatro anos - 5 mil, no total, em 4,8 hectares - foram bancados voluntariamente pelo empresário Samuel Lopes de Oliveira, dono de uma gráfica em Santo André (SP), que com isso neutralizou no mínimo 40 toneladas de carbono/ano, levando-se em conta todas as atividades da gráfica.
Há quatro anos eram mudinhas isoladas numa árida área de pasto. Agora, ao revisitá-las e vê-las a meio caminho de se transformarem numa densa floresta, só dá para parafrasear Pero Vaz de Caminha: "Nesta terra, em se plantando, tudo dá". Em 2009 foram mais 2 mil mudas e, recentemente, Diniz plantou 4 mil, em 4 hectares. Em breve, mais um trecho de mata surgirá.
Há dois anos, parte da área florestal, 6,3 hectares, transformou-se na primeira Reserva Particular do Patrimônio Natural da região, a RPPN Sítio Duas Cachoeiras. E assim permanecerá intocada, independentemente de o sítio mudar de dono ou não.
Vida orgânica. Guaraci Diniz seria um sitiante como qualquer outro que precisasse ou quisesse reflorestar sua propriedade, não fosse o propósito que se incumbiu - ou foi incumbido, por força das circunstâncias -, de tentar viver o mais organicamente possível. "Sou de São Paulo. Quando vim para o sítio, foi para morar mais perto da faculdade, que fazia em Campinas", diz. "Quando a gente vem morar numa propriedade rural e percebe todas as necessidades do local, começa a pensar em como atendê-las, não necessariamente gerando receita, mas sobretudo sem gerar despesa."
Adubos verdes. Começou por cultivar o próprio alimento. E a pesquisar como fazê-lo da maneira mais saudável e menos custosa possível - sem o uso de adubo químico e agrotóxicos -, só fertilizando a terra com o que a própria natureza oferece, como adubos verdes, obtidos dos próprios restos de culturas. Foi se enfronhando no universo da agroecologia e partiu para a agrofloresta, cultivo que tenta imitar a biodiversidade de uma floresta tropical ou é feito dentro da própria mata. Então, além do alimento, começou a formar uma floresta que abrigasse as plantas cultivadas.
Hoje o Sítio Duas Cachoeiras tem 80% de sua área reflorestada. São 7 hectares de mata com mais de 50 anos, que já existiam, e mais 17 hectares de floresta reintroduzidos por Diniz.
O resultado do trabalho foi aparecendo. "De uma nascente e meia - porque uma secava no inverno -, hoje tenho cinco, com água abundante." Seu modo de vida mudou e a sustentabilidade do sítio pôde ser provada em números. Há dez anos, o Laboratório de Engenharia Ecológica e Aplicada da Unicamp calculou o índice de sustentabilidade do Sítio Duas Cachoeiras: 87%.
Ou seja, 87% das necessidades da propriedade são atendidas ali, desde alimentos até energia - painéis solares dão conta do aquecimento da água e de fornecimento de eletricidade, além de rodas d'água instaladas no ribeirão que corta a propriedade e forma duas cachoeiras. "É o que se consegue quando se trata a terra como um organismo; nós fazemos parte dele", ensina. O aprendizado desses anos se transformou em consultorias, que presta não só na região, mas aos interessados de todo o País, ensinando a quem quiser sobre manejo agroecológico de sítios, recomposição florestal, sementes e agrofloresta.
Outro estudo feito no sítio, também da Unicamp, detectou a importância da manutenção ou recomposição da cobertura vegetal nas áreas rurais para a produção de água limpa e abundante para a população. "Com a floresta recomposta, contribuímos com o aumento da capacidade de abastecer de água de excelente qualidade o distrito de Arcadas, em Amparo", garante. Esse estudo demonstrou que somente a área reflorestada no sítio produz o equivalente a 1,5% da água necessária para o abastecimento da área urbana de Amparo.
Em um terceiro estudo, o pesquisador Thiago Roncon, da Universidade Federal de São Carlos, provou que floresta em pé vale mais que soja, por todos os benefícios econômicos e ambientais ao entorno. "Quando se fala em pagamento por serviços ambientais, como querem os governos federal e estadual, essas contas deveriam ser levadas em consideração. Os benefícios que uma propriedade preservada gera para a comunidade são infinitamente maiores que os R$ 200 por hectare que o governo estadual se propõe a pagar para os produtores."
Antes e depois. Nas fotos que mostram o antes e o depois do sítio, é patente a transformação da paisagem. De pastos degradados - cenário ainda presente nas propriedades vizinhas -, o sítio virou oásis. Literalmente, pois no período seco é comum vizinhos virem lhe pedir água para dar às criações ou às lavouras, ainda tratadas convencionalmente e com nascentes intermitentes.
"Infelizmente, os agricultores do entorno ainda adotam práticas convencionais, com adubos químicos e agrotóxicos e sem controle da erosão." Assim, não é possível evitar a contaminação do Ribeirão do Mosquito, que divisa a propriedade e faz parte de área de preservação de mananciais.
Hoje Diniz ainda mantém uma pequena área de pasto rotacionado para cerca de 30 ovelhas e 6 cavalos. "Todos os animais aqui morrem de velhos", diz o sitiante, que teve um cavalo que viveu surpreendentes 31 anos. As ovelhas hoje contribuem para a retirada da lã, que a mulher de Guaraci, Cecília, usa para fazer tapetes e tecidos em cursos de tecelagem, com corantes naturais, tirados de plantas como urucum, barbatimão, anileira e curcuma.
O próximo passo agora é garantir a viabilidade da RPPN, atraindo investidores socioambientais interessados em contribuir com o plano de manejo, que todo proprietário de reservas do gênero tem de fazer. "Assim manteremos as atividades de educação ambiental com escolas e de visitas de pesquisadores interessados em conhecer mais a fundo o nosso trabalho", diz. "Eles sempre constatam que, se bem tratada, a terra responde, e rápido."

A verdade, alto e bom som, Aliás, 9 set 12


BERNARDO KUCINSKI - O Estado de S.Paulo
Ouvimos depoimentos dramáticos na primeira reunião da Comissão da Verdade com os familiares de desaparecidos políticos, em junho em São Paulo. Já há uma terceira geração assombrada pelos seus desaparecidos: sobrinhos buscando despojos de tios, netos inquirindo por avós. Essa reunião deveria ter sido aberta à imprensa, transmitida pelos meios de comunicação de massa. Mas ela se deu a portas fechadas.
Por que a Comissão da Verdade trabalha em sigilo, como se ainda estivéssemos em tempos de ditadura? Já naquela reunião sugeri, em curta intervenção, que as reuniões fossem abertas. Hoje, acrescento, que haja sessões televisadas, como são as da Câmara, do Senado e do Supremo. Se a Comissão da Verdade não foi criada para fazer justiça, se não tem objetivo punitivo, que outro sentido teria senão o pedagógico, o de revelar a nossos filhos e netos as atrocidades cometidas no passado recente para que não se repitam?
Um dos membros da comissão, o advogado José Carlos Dias, argumentou, então, que o sigilo era necessário para que os depoentes se sentissem à vontade para falar, para que se pudesse chegar à verdade última dos fatos. Mas, que verdades a Comissão da Verdade procura? O que é a verdade, numa comissão que não tem funções processuais? Que não precisa provar a um júri que o agente do Estado assassinou aquele estudante já rendido com três tiros e não com quatro ou com dois, ou a pauladas?
Claro, ainda queremos enterrar nossos mortos. Ainda há uma verdade individual devida a cada família. Essa é a dimensão pessoal da tragédia. Mas há a dimensão nacional, na qual a verdade que interessa é a verdade socializada, apropriada pela sociedade civil, a verdade como ferramenta de conscientização e elaboração da nossa história. O que está em jogo é o domínio da memória histórica. E isso só se consegue abrindo as sessões ao conhecimento amplo, televisionando-as, exibindo as inquirições e documentos encontrados, aí sim, nos mais escabrosos detalhes, para que não seja uma narrativa abstrata.
A abertura ampla das sessões como estratégia geral não impediria a convocação de determinados protagonistas da repressão para algumas sessões reservadas nem colidiria com essa convocação. Que não seja esse o motivo. Muitos desses personagens já estão falando, sem exigir sigilo, em livros recém-publicados. Outros estão depondo ante a força-tarefa dos procuradores federais que investigam as desaparições, mesmo sabendo que esses procuradores, diferentemente da Comissão da Verdade, têm como objetivo fazer justiça.
Já se passaram quatro meses desde a instalação da Comissão da Verdade e nada se sabe sobre seus trabalhos. Ocasionalmente se lê nos jornais que a comissão vai chamar fulano ou sicrano, por terem sido citados em reportagens desses mesmos veículos, entre elas o pungente relato deste jornal sobre a Casa da Morte, de Petrópolis. É a mídia pautando a Comissão da Verdade e não a Comissão da Verdade pautando a mídia.
Em debate sobre a Comissão da Verdade, no mês passado, em Brasília, um de seus membros, o ex-procurador da República Cláudio Fonteles, iniciou sua fala com a advertência: "A comissão da verdade não levará a nada sem a pressão da sociedade civil". Disse também que um dos objetivos da Comissão da Verdade é estimular a formação de outras comissões da verdade pelo Brasil afora, comissões estaduais, municipais, em vários âmbitos. Eu então perguntei, e repito aqui a pergunta: como motivar a sociedade civil, se seus trabalhos são secretos?
Essa é a principal contradição da Comissão da Verdade: adotar procedimentos de inquérito policial, que tem por objetivo fundamentar indiciamentos em tribunal, embora seu objetivo seja o julgamento histórico, não o criminal. Outra contradição é a que se dá entre o perfil dos seus sete integrantes, pessoas comprometidas com os direitos humanos, e a natureza de uma comissão nascida por razões de Estado, com as limitações delas decorrentes.
Essa é uma contradição que sempre existiria em algum grau, porque o Estado é um espaço de disputa. Mas, ao adotar o segredo como estratégia, a comissão tenta resolver essa contradição assumindo as razões do Estado, não as da sociedade civil. Mais que isso, extrapolou as razões de Estado, pois a lei que a instituiu não impôs o segredo absoluto a seus trabalhos, apenas abriu a possibilidade de sigilo se assim o desejar determinada testemunha.
Ao final dessas sessões sigilosas, a Comissão da Verdade deverá nos apresentar um relatório, talvez chocante, revelando episódios, fatos e comprometimentos, a maioria dos quais já conhecidos em linhas gerais e muitos deles com detalhes. Talvez até solte, antes disso, um relatório parcial ou dois. Tanto os relatórios parciais, se existirem, quanto o final, vão ganhar alguns dias de destaque na mídia. E depois não mais se falará no assunto. E se, posteriormente, alguém ousar levantar de novo o tema dos desaparecidos, o pensamento hegemônico responderá: vocês já não tiveram a Comissão da Verdade, que mais vocês querem?