A demanda chinesa pelo colágeno encontrado logo abaixo da pele dos jumentos tem provocado uma redução drástica da população desses animais em diversos países nas últimas duas décadas, inclusive no Brasil.
Aqui, mais de um milhão de animais foram abatidos entre 1996 e 2025, diminuindo o número de jumentos brasileiros de 1,37 milhão para pouco mais de 78 mil, uma redução de 94%, conforme as estimativas de entidades como a Frente Nacional de Defesa dos Jumentos.
Mantido o ritmo atual de abates, a espécie "não chegaria a 2030" no Brasil, diz Pierre Barnabé Escodro, professor de Medicina Veterinária, Inovação e Empreendedorismo da Ufal (Universidade Federal de Alagoas).
Ele faz parte da rede de pesquisadores que têm alertado sobre o risco de extinção desses animais no país e que defendem a aprovação de um projeto de lei de 2022 que proíbe o abate, atualmente parado no Congresso.
O grupo se reúne em Maceió (AL) a partir desta quinta (26) no evento Jumentos do Brasil, que está na terceira edição e deve reunir cerca de 150 pessoas, incluindo cientistas de outros países.
"O jumento está em risco de extinção em vários países. No Egito ele praticamente não existe mais, em várias outras partes da África. Por isso o movimento pela conservação hoje é global", afirma Escodro.
O abate de jumentos no Brasil
Três frigoríficos hoje têm licença do Serviço de Inspeção Federal (SIF) para abater jumentos (ou jegues, como também são chamados), todos na Bahia.
Apesar da permissão, pesquisadores e grupos ligados às iniciativas de conservação argumentam que o processo não tem rastreabilidade, o que significa que não há controle adequado de doenças ou garantia de que os jumentos não são submetidos a maus-tratos.
Também afirmam que a atividade não tem uma cadeia de produção propriamente dita, sendo puramente extrativista e, por isso, "insustentável".
"Produzir jumento para abate não é rentável, é extrativismo mesmo", acrescenta o professor Escodro.
Como o ritmo de abate tem sido maior do que a velocidade com que os animais conseguem se reproduzir, eles acabaram entrando em ameaça de extinção.
Desde 2019, a Justiça chegou a suspender algumas vezes a permissão para a atividade, após ser acionada por movimentos de defesa dos direitos dos animais que alegavam que a prática envolvia maus-tratos e poderia levar ao desaparecimento da espécie.
Em um artigo publicado no último mês de maio na revista científica Animals, Pierre e outros cinco pesquisadores apontam que a análise de 104 animais abandonados destinados ao abate revelaram sinais de inflamação sistêmica, sinalizando a existência de falhas graves no cuidado com os animais.
Em 2022, um projeto de lei apresentado na Assembleia Legislativa na Bahia buscava proibir o abate no Estado.
No último mês de abril, o relator do PL, deputado Paulo Câmara (PSDB), emitiu parecer contrário à proposta argumentando que a atividade é regulamentada, que tem importância econômica para o Estado e que não haveria "necessidade de proibir essa prática, mas sim fortalecer a fiscalização e o cumprimento das normas existentes".
O parlamentar também afirmou que a população de jumentos no país estaria "estável e equilibrada" e que os animais não estariam em risco de extinção, o que motivou a publicação de uma nota de repúdio por parte de grupos de conservação.
A reportagem entrou em contato com a assessoria de Paulo Câmara, e por meio de nota o deputado reiterou as razões apresentadas no parecer, que afirmou ter sido "embasado em critérios técnicos, legais e econômicos", e não representar, "de forma alguma, negligência em relação ao bem-estar animal".
Peles vendidas a US$ 4.000
Em 2021, a BBC News Brasil visitou a cidade baiana de Amargosa, onde funciona um dos frigoríficos, e mostrou como o comércio e abate de jumentos vinha afetando parte do Nordeste.
Antes ubíquos na região, onde se tornaram um símbolo da cultura local, eles quase desapareceram.
Pierre Escodro diz que no interior de Alagoas, Estado onde vive, jumentos que antes eram comercializados por valores entre R$ 100 e R$ 150 hoje, diante da escassez, são negociados por R$ 400 e R$ 500.
"E a pele continua custando US$ 3.000, US$ 4.000 [R$ 16,5 mil e R$ 22 mil]", ele completa, referindo-se à parte visada para produção de "ejiao", um produto popular na medicina chinesa, sem eficácia comprovada e que promete tratar um leque amplo de problemas de saúde, de anemia a impotência sexual.
Segundo a organização The Donkey Sanctuary, cerca de 5,9 milhões de jumentos são abatidos anualmente para abastecer o mercado de ejiao, que movimenta cerca de US$ 6,38 bilhões (cerca de R$ 35,2 bilhões).
Uma pesquisa conduzida pela Universidade Maasai Mara, no Quênia, e divulgada nesta quarta (25) mostra os impactos negativos que o roubo de jumentos para retirada da pele tem sobre comunidades rurais quenianas.
As principais afetadas são as mulheres, que usam esses animais para auxiliá-las em diversos trabalhos braçais, mas os efeitos foram observados em todo o núcleo familiar, com redução inclusive da renda domiciliar.
Santuários de jegues
Os jumentos já tiveram papel importante na agricultura familiar do Nordeste. Com a mecanização da lavoura e a popularização de veículos automotores, contudo, eles perderam protagonismo e muitos acabaram abandonados em estradas pela região.
Um dos focos de pesquisadores como Escodro é desenvolver estratégias para reintroduzir os jumentos na sociedade. As possibilidades, segundo ele, são várias. Desde atividades de pastoreio e o uso em terapias assistidas, a "jumentoterapia", até a reinserção na agricultura familiar, a exemplo de iniciativas em pequenas propriedades rurais na Europa.
O tema é um dos assuntos que serão discutidos no evento que reúne especialistas nesta semana, ao lado da possível criação de áreas de conservação de jumentos no país.
A ideia seria transformar regiões que hoje concentram esses animais em relativa segurança, de onde é inclusive difícil retirá-los para realização de abate, para a construção de santuários.
A área de Jericoacoara, em um trecho bastante turístico do litoral do Ceará, concentra cerca de 700 jegues. No interior do Estado, em Santa Quitéria, uma fazenda que pertence ao Departamento Estadual de Trânsito (Detran) abriga algo entre 1.200 e 1.300 animais.
"Isso fortaleceria o combate à extinção no médio prazo", diz Escodro.
Outra frente de atuação é pressionar pela aprovação do projeto de lei 1.973, de 2022, que debate a proibição do abate em todo o território nacional. Grupos que defendem a causa lançaram recentemente o site Fim do Abate como parte da campanha.
No ano passado, a União Africana aprovou uma moratória de 15 anos para o abate dos animais com o objetivo de explorar a pele.
Esta reportagem foi publicada originalmente aqui.
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