segunda-feira, 16 de junho de 2025

Edição de sábado: A cabeça militar, MEIO

 

Edição de sábado: A cabeça militar

Por Leonardo Pimentel

“Nunca na história deste país” já virou um clichê, quase uma anedota, na política. Mas o que o Brasil testemunhou no início desta semana foi, de fato, tão histórico quanto inédito. Diante do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, um magistrado civil, oficiais da mais alta patente das Forças Armadas de posição , vários na condição de réus, no processo sobre o plano de golpe de Estado após a derrota de Jair Bolsonaro (PL) nas eleições de 2022. E uma semana terminou com o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do então presidente e delator no processo, tendo de explicar à Justiça o motivo para sua família deixar o país.

Os acusados, claro, negaram a intenção de ruptura do Estado Democrático de Direito, mas suas respostas revelam uma visão no mínimo peculiar no trato com a democracia. O general Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, negou ter orientado a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para produzir relatórios com informações falsas sobre as eleições dizendo que “ não havia clima ”, como se o “clima” justificasse um crime. O próprio Bolsonaro afirmou que a minuta golpista que mostrou aos comandantes militares era apenas “uns considerandos sem cabeçalho nem fechos” e chamou de “ uns malucos ” seus apoiadores que pediam intervenção militar.

Setores dentro das Forças Armadas esperam que o julgamento e a probabilidade de serem submetidos à maioria dos réus separem as condutas “dos CPFs” da instituição militar. Mas, em entrevista exclusiva ao Meio , a cientista política Adriana Marques, professora e pesquisadora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ e autora de Missão Haiti e Forças Armadas na Segurança Pública , afirma que os militares brasileiros têm uma visão simplista de seu papel na democracia e uma enorme resistência ao controle pela sociedade civil.

Confira os trechos principais da entrevista.

O que os depoimentos dos militares ao STF nos dizem da noção de que as Forças Armadas têm do próprio papel numa democracia?

Fica evidente que esses militares têm uma visão muito limitada e simplista da democracia e de qual deve ser o papel deles nela. Tem uma história que ilustra bem essas limitações. Em 1997, durante o governo [do presidente americano Bill] Clinton, foi criado o Centro William J. Perry para Estudos de Defesa Hemisférica, dentro da Universidade de Defesa Nacional dos EUA. O objetivo era tratar a defesa dentro de uma nova abordagem pós-Guerra Fria e levar uma visão de democracia para as Forças Armadas da América Latina. Dois professores, um americano e um brasileiro, montaram um curso para as escolas militares do continente. Quando apresentado às autoridades brasileiras, a ocorrência foi: “Não, aqui não pode ser desse jeito”.

Por quê?

O curso foi criado em cima de quatro princípios das relações civis militares que estão conectados com a teoria democrática. E estamos falando de democracia liberal. Não é comunismo, não. O primeiro é supremacia civil, ou seja, numa democracia os militares não podem intervir na política. O segundo é exatamente a subordinação militar à política, ou seja, as autoridades políticas determinam qual deve ser o papel das Forças Armadas. O terceiro é a neutralidade política. Como as Forças Armadas não podem ser partidárias, não podem tomar partido político, têm de cumprir as suas funções independentemente de quem não tiver governo. Por último, o controle civil. Os militares implementam uma política pública de defesa projetada pelo poder civil e comandada por um ministro da Defesa Civil.

Mas não é isso que se presume que não haja Brasil pós-redemocratização?

Em tese, isso é o que existe em toda democracia liberal. É uma política de Defesa, não é revanchismo, não é vingança.

Então por que a resistência?

Porque os militares acham que não podem ser ditos nesses termos. Eles têm pavor do termo “controle civil”, pavor. Alegam que é uma maneira de minimizar o trabalho que faz, que não precisa ser controlado, que não responde a governos, e sim à Constituição etc. Em 2023 eu dei uma palestra para militares do Comando do Exército num curso feito em parceria entre a Escola Superior de Guerra (ESG) e o Centro Perry e botei esses quatro pilares em um dos slides. Sem brincadeira, fui tratado igual a Marina [Silva] na comissão do Senado.

Com aquela agressividade?

Sim. Um oficial se declarou e disse que a família dele era perseguida desde 1989 por conta dessa ideia de civis comandarem a política de defesa. Depois de dizer isso, foi cumprimentado pelos colegas. Aí eu falei de Constituição, de pluralismo político, mas não adiantou nada. Depois que eles viram aqueles quatro princípios, ficaram apavorados. Agora, como você sustenta uma democracia quando os militares da ativa se recusam e são reativos aos princípios básicos dessa democracia liberal?

E por que essa visão persiste?

Porque nunca foi trabalhado, nunca foi objeto de discussão. Não foi pelos governos de centro-direita nem pelos governos de centro-esquerda que comandaram o país do fim da ditadura até o início do processo de destruição democrática, lá pelo governo Temer. Bolsonaro, nem se fala. Mas é isso que os governos da Nova República, quando temos uma democracia funcional, não enfrentam essas questões da mentalidade militar. Optei pela acomodação.

Quando se fala em acomodação, pensa-se logo em anistia. Existe entre os militares a expectativa de que isso se repita?

Eles tinham, não sei se ainda têm. Quanto a tomar a decisão de aderir à intenção golpista, tinha certeza de que seriam anistiados caso fracassassem. Isso fica muito evidente nas falas do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS) [general da reserva e vice-presidente no governo Bolsonaro]. Ele é o autor do projeto de lei 5.064 , que anistia os condenados pelos crimes de 8 de janeiro de 2023 e pode ser usado para beneficiários das autoridades acusadas de tentativa de golpe. Um dos argumentos é exatamente esse: todo o mundo que tentou dar um golpe ao longo da República e fracassou foi anistiado. Por que não anistiar agora? Quer dizer, justo quando chegou na vez deles, vão mudar de regra? Que maldade. Por que isso? (risos)

A senhora entrevistou os generais Augusto Heleno e Walter Braga Netto, representantes no STF, sobre missões de paz da ONU de quais participaram, no Haiti e no Timor Leste, respectivamente. Essas experiências impactaram de alguma forma?

Uma coisa curiosa que você deve ter reparado nos depoimentos é que tanto o Heleno quanto o Braga Netto afirmaram: “Nós somos democráticos” e deram como exemplo exatamente a própria atuação nas missões de paz. Uma das vezes em que o Heleno foi cortado pelo próprio advogado foi quando ele começou a falar: “Inclusive, quando eu estava no Haiti...” para dizer como especificações as eleições lá. Já o Braga Netto disse: "Imagina, eu ameaçar a democracia? Eu fiquei numa brigada australiana por dez meses defendendo a democracia". Quando ele serviu em uma das missões da ONU em Timor Leste foi justamente para organizar as primeiras eleições livres no país independente. Eles são militares cuja formação aconteceu durante a ditadura, mas que viveram suas carreiras já no regime democrático. Tiveram contato com esses protocolos do que um militar pode ou não fazer numa democracia, não só no Brasil, mas em organismos internacionais. Tiveram papéis importantes nas ações da ONU.

E como interpretam isso?

Interpretam como uma experiência de gestão que não era de atividades tipicamente militares. Organizar uma eleição não é uma tarefa militar. Mas eles desempenharam um papel porque essa era a natureza das missões das quais estavam participando. E, obviamente, não fazia isso com autonomia. Havia os diretores das agências, os chefes das missões, que eram funcionários da ONU, não militares. Mas, quando eles voltaram para o Brasil com esse aprendizado, ficaram muito à vontade, nunca houve muita supervisão, monitoramento dessas atividades militares mais de perto. Daí parecem muito naturais. "Ah, eu organizei uma eleição no Haiti sendo militar da ativa, por que não posso organizar aqui? Qual a diferença?"

Mas isso não aconteceu com militares dos outros países, certo?

De forma alguma. Havia generais americanos, franceses, britânicos e outras nessas missões, desempenhando as mesmas tarefas. A diferença é que, ao voltarem para seus países, eles retomam atividades econômicas, não foram chamados pelo equivalente ao TSE para participar da comissão de transparência das eleições. No máximo, ao passarem para a reserva, vão fundar ou trabalhar em um think tank sobre assuntos relacionados às missões que desempenharam na ativa. Não há qualquer ingerência sobre assuntos civis. Já os brasileiros voltaram com essa mentalidade de “já fizemos, deu tudo certo”. “Tem tanto trabalho aqui, vamos botar os militares para fazer.” E é um pensamento antigo. Há uma pesquisa da professora de sociologia Maria Alice Rezende e do cientista político Eduardo Raposo sobre as profissões mais recorrentes entre ministros brasileiros ao longo do século 20, e as duas que mais apareceram foram advogados e militares. É curioso pensar isso dentro de uma sociedade civil.

Duas bases da estrutura militar são a disciplina e a hierarquia. Como foi possível que Bolsonaro, um capitão indisciplinado, exercesse essa influência sobre gerais, a ponto de levá-los a tramar uma ruptura institucional?

A verdade é que os generais de quatro estrelas é que se vincularam ao projeto político do Bolsonaro. Se nos lembrarmos da trajetória dele, entre se formar na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) em 1977 e ir para a reserva em 1988, foram apenas 11 anos no Exército. Ou seja, foi mais político do que militar. Ele era muito malvisto na caserna até o começo da crise política, com os protestos de 2013. Quem vai dar mais espaço para Bolsonaro é, na verdade, o general Eduardo Villas Bôas [comandante do Exército entre 2015 e 2019]. Aliás, o comando desse general nos ajuda a entender a erosão da democracia. Bolsonaro como deputado era funcional para as Forças Armadas, uma espécie de office boy, de despachante de interesses militares no Congresso. Mas era visto nos quartéis com desconfiança. Consideravam o ex-capitão muito temperamental, muito burro, pouco confiável. Ouvi de vários oficiais que, de vez em quando, tinham de “dar uma enquadrada nele”.

O que mudou?

Bolsonaro começa a fazer campanha em 2014, e o general Villas Bôas assume o comando do Exército em 2015, no segundo mandato de Dilma. Aos poucos a campanha dele ganha atração, ganha destaque entre essa geração de militares que considerava todos os políticos corruptos e incapazes de governar, enquanto eles eram competentes, honestos, acima do bem e do mal. Aí de repente tem um candidato que vai falar a língua deles, vai defender o projeto de país que eles têm, a visão deles. Foi ali uma confluência de interesses, somada ao fato de que a turma que estudou com Bolsonaro na Aman foi chegando às quatro estrelas. Luiz Eduardo Ramos [ex-secretário-geral da Presidência], Edson Pujol [ex-comandante do Exército], o pai do Mauro Cid, todos estudaram com ele. O general Santos Cruz era seu amigo. Todos tiveram um papel importante na campanha e no governo.

Esses laços pessoais e essa “família militar” insular influenciam na visão deles sobre a sociedade civil e a democracia?

Esse é um ponto fundamental. Na década de 1970 o [cientista político americano] Alfred Stepan fez um levantamento na Aman sobre a origem social dos militares e constatou que a maioria era de classe média. Representava os anseios da classe média como um todo. Em meados dos anos 1990, [o antropólogo] Celso Castro atualizou esse estudo no livro O Espírito Militar e parcerias um elevado grau de endogamia, ou seja, militares se casaram com filhas de militares e seus filhos seguiram a carreira militar. Foi um processo que se intensificou nos últimos anos da ditadura, e é uma geração dos generais que participou do governo Bolsonaro. Uma geração mais distanciada da sociedade civil. E nos depoimentos ao STF, como o dos generais Freire Gomes e Júlio César Arruda [ex-comandantes do Exército], a gente vê um isolamento dentro do isolamento. Dentro da “grande família militar” você tem as bolhas das Armas e da especialização. O Mauro Cid viveu a vida dele na bolha das Forças Especiais, de onde veio Arruda e Freire Gomes. Então eles disseram: "Conheço o pai do Cid desde a juventude. Frequentávamos a casa, é uma pessoa muito correta".

É o único mundo que eles conhecem...

O general Villas Bôas deu um depoimento lapidar a Celso Castro contando que teve contato com civis pela primeira vez aos 49 anos ao fazer um curso na ESG. Olha o grau de isolamento em que esse senhor vivia para chegar aos 49 anos de idade e nunca ter convivido com o mundo cá fora. Foi aí que ele descobriu esse bicho de zoológico chamado “civil” e teve de conviver com essas pessoas. Outro exemplo importante foi uma conversa do general Tomás Paiva com subordinados em janeiro de 2023, quando ele era comandante do Exército e não sabia que estava sendo gravado . Ele disse: “Nós somos todos da bolha fardada, da bolha militarista, da bolha de direita, conservadora”.

Não foi sempre assim?

Não. Isso é algo que se viu nas Forças Armadas do período da ditadura para cá. Antes, falando da década de 1950, da criação da Petrobras, o pluralismo que se via na sociedade estava refletido nos militares. Não havia controle civil, mas tinha pluralismo político, tinha gente que era mais nacionalista, tinha comunista, tinha conservador, gente mais de extrema direita, tinha de tudo ali. E esse pluralismo acabou durante a ditadura. Hoje há essa concentração em um pensamento autoritário de direita. Foi nesse caldo que pessoas como o general Heleno e o Villas Bôas foram alimentadas. E há o anticomunismo como mobilizador político do militar, daí o general Tomás falar em ser da “bolha de direita”.

Alguns militares têm a esperança de que o julgamento no STF separe a conduta “dos CPFs” da instituição. É possível?

Acho que esse julgamento está sendo a maior lição de democracia que os militares brasileiros já receberam. A que não tivemos nossos bancos escolares. E a aceitação do Xandão, que é um constitucionalista conservador que acredita naqueles quatro princípios dos quais eu falei antes. Os que pautam o que os militares podem ou não fazer em Estado Democrático de Direito.

Essa lição vai ser incorporada?

Na verdade essa é uma tarefa do governo, da classe política, da sociedade, da imprensa livre... Isso é uma cultura democrática. É preciso entender duas coisas diferentes. Uma instituição militar nunca será democrática. Nunca. Como você disse, ela é baseada em hierarquia e disciplina. Outra coisa é essa instituição ocupar um papel legítimo dentro de uma democracia. E o interessante é que toda essa teoria das relações entre civis e militares na sociedade democrática tem uma base conservadora. Quem falou disso pela primeira vez foi [o pensador e político britânico] Edmund Burke, tido como do conservadorismo político, na época da Revolução Francesa, em 1792. Ele viu o fundador que estava acontecendo na França e descobriu um absurdo os militares se revoltarem e se envolverem com a política. Os revolucionários têm isso em mente. Você não faz uma revolução sem armas. Já no século 20 o cientista conservador político americano Samuel Huntington, leitor de Burke, pega toda essa discussão que existia na Europa, especialmente no Reino Unido, e organiza esses princípios no livro O Soldado e o Estado , de 1957. Ou seja, é um pensamento conservador.

Não por aqui.

O problema é que no Brasil e na América Latina em geral os princípios são feitos como coisas de comunista. E o mais doido é que os comunistas não defendem a separação entre militares e política, pelo contrário. A ideia é divulgar o pensamento revolucionário nas Forças Armadas.

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