quarta-feira, 11 de junho de 2025

IA, educação e o velho pacto das elites, Rodrigo Tavares, FSP

 Em 1995, Florestan Fernandes escreveu na Folha que no Brasil "sempre se seguiu a rotina de privilegiar os privilegiados". Quatro anos depois, Celso Furtado escreveu no mesmo jornal que "o Brasil acumulou historicamente um considerável atraso em investimento no fator humano". Desde a chegada dos povos não originários, a desigualdade educacional tem sido um dos pilares centrais da reprodução das elites no Brasil.

Apesar da universalização do ensino público, da proliferação de universidades e da expansão dos mecanismos de acesso, como bolsas de estudo e cotas, os desequilíbrios permanecem no acesso aos códigos de prestígio, às práticas discursivas que estruturam o capital simbólico das elites, às redes de influência, aos recursos pedagógicos e, não menos importante, ao tempo livre necessário para estudar.

Desde sempre que as elites culturais ergueram em torno de si barreiras simbólicas, tão eficazes quanto materiais, de estratificação e hierarquização. Quando Gutenberg inventou a imprensa de tipos móveis, em meados do século 15, a elite eclesiástica e aristocrática percebeu que a perda do controle sobre o fluxo de ideias poderia desfiar a teia de controle que sustentava o seu poder. O Quinto Concílio de Latrão (1512-1517) determinou que nenhum livro poderia ser impresso sem aprovação de um bispo local, criando um sistema de censura. Durante mais de 300 anos, até 1808, o Brasil foi o único grande território da América sem imprensa local —um atraso deliberado para preservar a ordem colonial e a hierarquia social.

Mas será que os mecanismos de seleção e reprodução social não serão desfeitos com a IA generativa?

Dado Ruvic/Reuters

À primeira vista, sim. Com ClaudeGeminiChatGPT ou LLaMA o conhecimento especializado deixa de estar confinado a espaços institucionalmente legitimados e socialmente filtrados. A tecnologia permite que indivíduos fora dos circuitos tradicionais de produção e mediação do saber acessem, em escala massiva e com enorme velocidade, um repertório que antes estava protegido por camadas de formação formal, de capital cultural acumulado e de redes de sociabilidade exclusivas.

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Não é apenas uma questão de acesso à informação bruta, mas de uma nova forma de inteligência, que reduz a assimetria cognitiva entre os centros e as periferias do sistema educacional e cultural. Esse movimento, ainda incipiente, representa uma fissura real nas fronteiras simbólicas que tradicionalmente separavam os que sabiam e os que não sabiam. Hoje, um adolescente no Jardim Ângela ou no Jardim América consegue, em segundos, respostas semelhantes a perguntas que antes exigiriam anos de estudo ou acesso a círculos restritos.

Mas será o fim da desigualdade educacional que contribui para a preservação das elites? Eu não estou tão seguro.

A história demonstra que, a cada ciclo de democratização do saber, as elites rapidamente reagem criando novos mecanismos de distinção. A IA poderá ser apenas mais um capítulo nessa longa trajetória. Se o conhecimento técnico se universaliza, o valor migrará para atributos menos acessíveis: capital relacional, sofisticação cultural, experiências internacionais, capacidade de interpretação crítica e inteligência social. Tudo isto são elementos ainda profundamente condicionados pela origem social e pela segmentação econômica.

Aliás, as próprias ferramentas de IA tendem a reforçar, e não a reduzir, tais desigualdades: quem detém capital cultural, domínio da linguagem e pensamento crítico sabe como melhor explorá-las, personalizá-las e extrair delas valor diferencial. Já os usuários com menor repertório ou orientação crítica correm maior risco de consumir conteúdos superficiais e estéreis, consolidando, sem perceber, seu próprio lugar nas camadas inferiores da nova hierarquia cognitiva.

Além disso, é importante notar que o modelo de negócios das grandes empresas de IA se alimenta justamente da manutenção e ampliação de assimetrias, seja pela opacidade dos algoritmos, pelo controle centralizado da tecnologia, ou pela criação de versões diferenciadas de acesso e qualidade de conteúdo, segmentadas conforme a capacidade de pagamento.

A rotina de privilegiar os privilegiados deverá continuar. As elites não temem a difusão do saber, desde que possam continuar a decidir quem são os sábios. Mesmo quando entre os sábios que escolhem, estão vozes como a de Florestan Fernandes, que denunciou o privilégio de as elites poderem escolhê-lo.

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