segunda-feira, 9 de junho de 2025

João Pereira Coutinho - O inferno das boas intenções, FSP (definitivo)

 Há nova edição americana do romance "1984", de George Orwell. E, segundo as notícias, há novo prefácio da obra, no qual a escritora Dolen Perkins-Valdez tece considerações críticas... ao personagem Winston Smith.

Curioso. Da última vez que li, Winston era a vítima do estado totalitário de Oceânia, submetido a vigilâncias e torturas pelo Big Brother.

Mas a escritora não o poupa. A misoginia de Smith é imperdoável a seus olhos.

É preciso um talento especial para ler "1984" e condenar Smith por suas falas ou pensamentos alegadamente antifeministas. É como visitar Auschwitz e não gostar da qualidade arquitetônica dos fornos crematórios.

Mas talvez esta seja a nova moda: condenar um autor, uma obra, um espetáculo teatral ou humorístico pelos pensamentos ou falas dos autores e seus personagens.

Se é esse o caso, o Brasil já está na vanguarda. A condenação de um humorista a mais de oito anos de prisão por suas piadas ofensivas assenta na mesma doutrina. Ou, para sermos rigorosos, em duas doutrinas.

A primeira, óbvia, passa pela negação da diferença entre o senhor Leonardo de Lima Borges Lins e um tal de "Leo Lins". Para a 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo, são a mesma pessoa.

A imagem apresenta uma ilustração estilizada de um zíper, que se estende horizontalmente. Acima do zíper, há manchas de tinta preta e uma mancha de tinta vermelha, que se assemelham a um rosto. O zíper é representado de forma simplificada, com um cursor na extremidade direita. O fundo é branco, destacando os elementos da ilustração.
Angelo Abu/Folhapress

O fato de o segundo subir ao palco, em espetáculo comercial, assumindo sua voz de humorista e contando piadas –boas, más, horrendas, não é esse o ponto— para um auditório que voluntariamente está ali para o ver e ouvir, é mero pormenor.

Aos olhos da Justiça, há uma identificação total e literal entre o criador e a criatura. O que permite antecipar, para oportunidades futuras, a condenação de qualquer autor de espetáculo, peça teatral, filme, livro, ilustração, pintura, canção, novela ou fotonovela em que alguém, algures, ridiculariza quem se sentir ridicularizado.

Se aplicarmos essa limpeza ao que ficou para trás, melhor demolir também teatros, cinemas, bibliotecas e museus. Não serão precisos para nada.

Aliás, lendo a sentença, entendemos que o contexto, longe de ser atenuante, é agravante.

Eis a segunda doutrina: o pessoal está mais descontraído num espetáculo de stand-up comedy, com seu superego em baixo, sem defesas para lidar com os crimes de racismo ou discriminação que o artista profere.

Na douta opinião do tribunal, podemos concluir que o escritor Umberto Eco não tinha razão quando escrevia sobre a função do autor e o papel do leitor.

Dizia Eco, essa alma primitiva, que o sentido de um texto não está apenas nas intenções do escritor. Esse sentido emerge da interação entre o autor e o leitor. Ou, simplificando, cada leitor lê um texto diferente porque o completa com sua inteligência e criatividade.

Aplicando o raciocínio ao stand-up comedy, essa observação é ainda mais pertinente: o público não é uma massa amorfa de débeis mentais que recebe acriticamente o que é dito sem perceber o artifício.

O público é parte da ficção performativa, aceitando tacitamente o risco, o abuso e o exagero.

E, para ele, as piadas podem ser tudo e o seu contrário. Insultos gratuitos. Observações geniais. Denúncia de tabus. Crítica a hipocrisias sociais. Mera experimentação conceitual ou literária. Boçalidades sem jeito.

É o público que decide, não o tribunal, ou o governo, ou um comitê de sábios, ou um qualquer rebanho descerebrado que se sente "ofendido" por palavras, imagens, sons ou silêncios.

O mundo não deveria ser um manicômio com paredes acolchoadas só para que alguns se sintam protegidos.

Infelizmente, o mundo está ficando esse manicômio, razão pela qual a revista Economist dedicou um editorial recente à regressão dramática da liberdade de expressão nas democracias liberais.

A Economist falava da Europa, com referências secundárias aos Estados Unidos. Mas o aviso também serve para o Brasil.

Se a ofensa é criminalizada, isso representa um duplo incentivo perverso: para que o poder judicial exorbite os seus poderes, transformando-se num inquisidor da moralidade pública; e para que os ofendidos se multipliquem, reclamando cada vez mais medidas censórias ao Estado.

No fim desse túnel, em que os tabus serão cada vez mais crescentes ("taboo ratchet", escreve a revista), não andaremos longe das ditaduras.

A grande diferença é que teremos cumprido o mesmo propósito —a destruição da liberdade de pensamento e de expressão— através do inferno das boas intenções.

Nenhum comentário: