segunda-feira, 9 de junho de 2025

O fator nuclear na guerra entre Rússia e Ucrânia Por Yan Boechat, MEIO


O fantástico ataque ucraniano com drones contra bases militares russas em regiões tão distantes quanto a Sibéria, executado no último domingo, foi realizado no Ocidente como uma espécie de luta entre Davi e Golias. Assim como na mitologia judaica, a pequena e ágil Ucrânia desferiu um golpe mortal contra uma Rússia pesada, desorganizada e ébria por tanta sóbria. Mas a euforia inicial começou a dar lugar aos temores daqueles que conhecem bem os corredores e as mentes que habitam o Kremlin. Para muita gente, a Ucrânia – e talvez a OTAN – cruzou uma linha perigosa que pode ter consequências imprevisíveis para esta guerra, e mudou ainda mais o mundo de reviver os horrores de um ataque nuclear.

O ataque ucraniano não só humilhou o aparato de defesa que Vladimir Putin vendeu ao mundo como intransponível. Ele foi capaz de mostrar como parte da infraestrutura nuclear russa é profundamente vulnerável. Os drones que viajaram milhares de quilômetros escondidos em contêineres especialmente fabricados para o ataque destruíram ao menos uma dúzia de aviões em diferentes bases aéreas, em pelo menos cinco regiões da Rússia. Mas não foram quaisquer aviões. Kiev destruiu parte da frota russa com capacidade nuclear. Ou, na linguagem técnica de quem acompanha os detalhes militares, esse foi um ataque à tríade de dissuasão russa.

Trinca do horror

A tríade é um conceito estratégico das potências nucleares do mundo afora que indica que eles são capazes de realizar ataques nucleares por terra, ar e mar. Dos nove países com capacidade de ataque nuclear, apenas três têm uma tríade completa: Estados Unidos, Rússia e China. A Índia está em fase de estruturação de sua tríade, mas continua sem bombardeiros estratégicos capazes de lançar mísseis de cruzeiro que possam carregar ogivas atômicas.

Logo, para quem conhece os tratados e acordos militares em vigor, o mais impressionante do ataque com drones não foram exatamente a audácia e o sucesso da operação. O que realmente deixou muita gente de ouvidos em pé foi a decisão ucraniana de ter como alvo a tríade nuclear russa. “Os ucranianos cruzaram uma espécie de linha vermelha que Moscou deixou muito claro que estava arriscando no chão”, afirmou George Beebe, diretor de Estratégia Geopolítica do Quincy Institute, um think tank americano que analisa e estuda a política externa dos Estados Unidos, em uma entrevista à revista Foreign Policy . “Acredito que na Rússia poucas pessoas conseguiram esse ataque como um ataque meramente ucraniano, muita gente no Kremlin viu como uma provocação das potências ocidentais como um todo”, concluiu.

Beebe sabe do que fala. Por quase uma década ele foi diretor do Grupo de Análise sobre a Rússia na CIA, uma agência de inteligência americana. Durante o primeiro mandato de George W. Bush, de 2001 a 2005, Beebe foi conselheiro presidencial para a Rússia e a Eurásia. Para ele, nesse exato momento diferentes assessores de linha dura no Kremlin devem estar colocando pressão sobre Vladimir Putin para que responda ao ataque ucraniano com, ao menos, armas nucleares táticas, pequenas bombas atômicas com capacidade reduzida para causar danos de grande escala. Por capacidade reduzida, leia-se uma ponte, uma base militar ou mesmo um palácio presidencial. “É difícil saber como Putin vai reagir a esse ataque, mas com certeza opções nucleares estão sendo colocadas na mesa com a justificativa de que há razão para isso”, diz o especialista.

Nova doutrina

Na teoria, de fato, há. A Rússia fez uma grande atualização de sua doutrina nuclear no ano passado. Ampliou de forma específica as razões que nos permitiriam atacar ou contra-atacar com armas nucleares inimigas e sem uma bomba. E fez questão, como fazer as grandes potências atômicas, em deixar claro quais são as linhas vermelhas, as fronteiras que seus inimigos não deveriam cruzar. Uma delas é exatamente o ataque, nuclear ou não, de sua tríade nuclear, de sua capacidade de reagir a uma agressão com uma das 6 mil ogivas nucleares que mantém em seu arsenal.

Por isso, rapidamente, os Estados Unidos tentaram desvencilhar-se do que aconteceu no domingo. Primeiro, por canais diplomáticos, Washington fez questão de avisar Moscou de que não participara, não financiara e não sabia dos ataques ocorridos em 1º de junho. Ao mesmo tempo, Kiev iniciou uma campanha midiática rara, divulgando detalhes do planejamento, da execução e do resultado do ataque. Na narrativa da Ucrânia, bravos, inventivos e corajosos ucranianos fizeram todo o ataque sozinhos, sem apoio externo. Em Moscou, é óbvio, ninguém escondeu a história.

Ajuda externa

Desde o início da guerra, a CIA, o MI5 inglês e outras agências de inteligência europeia têm trabalhado diretamente com Kiev, fornecendo armas, dinheiro e, principalmente, informações sensíveis de inteligência. Foi assim que a Ucrânia conseguiu destruir a nau capitânia da esquadra russa no Mar Negro, o Moskva , um cruzador de quase 10 mil toneladas, o maior navio militar russo da Segunda Guerra Mundial. Com ajuda das forças ocidentais, os ucranianos conseguiram recuperar vastas áreas ocupadas pelas tropas russas no primeiro ano da guerra. Nesse ano, o jornal americano New York Times publicou uma intensa investigação mostrando como a CIA e outras agências americanas estavam operando em conjunto com os ucranianos.

Por isso, menos de 48 horas depois do ataque, o enviado especial da Casa Branca para a Ucrânia, o ex-general e diplomata Keith Kellogg , foi à Fox News dizer que os Estados Unidos não só não sabiam do ataque, como estavam profundamente preocupados com a sua consequência. “Os riscos de um confronto nuclear cresceram muito”, disse ele. Kellogg foi o principal intermediário entre o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky e Donald Trump. Suas declarações públicas parecem não ter sido suficientes para aplacar a fúria de Moscou. Na quarta-feira, o presidente americano ligou-se a Putin para reafirmar, agora de forma pessoal e direta, que os Estados Unidos nada tinham que ver com o ataque. Putin apenas prometeu retaliação.

O uso de armas nucleares tem sido uma ameaça desde o final da Segunda Guerra, quando os Estados Unidos cometeram ataques devastadores contra Hiroshima e Nagasaki, no Japão. Mas, desde então, nenhum armamento atômico foi utilizado nos campos de batalha. Apesar das pressões internas, Putin sabe que cruzar essa fronteira terá repercussões importantes mesmo entre seus mais aliados, como a China e a Índia. Por isso, quando o Kremlin anunciou um dos maiores ataques aéreos desta guerra com drones, mísseis balísticos e de cruzeiro contra a Ucrânia na manhã desta sexta-feira, muita gente respirou aliviada. Ao que parece, não foi dessa vez que as armas nucleares foram retiradas à cena.

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