segunda-feira, 23 de junho de 2025

Capitalismo está devorando a si mesmo e a seus criadores, Michel França, FSP

 O capitalismo sempre foi um sistema predatório. Essa é, em parte, sua força. Seu apetite por inovação, expansão e lucro transformou o mundo mais rapidamente do que qualquer ideologia anterior. Criaram-se vacinas em tempo recorde. Conectaram-se continentes. Tiraram-se milhões da pobreza.

Mas o que antes era visto como um motor do progresso agora tem se tornado um ciclo de autodestruição. Sua lógica de funcionamento tem ignorado os limites sociais, ambientais e humanos, minando as bases que o sustentam, como a coesão social, a confiança pública, os recursos naturais e a saúde mental coletiva.

Empresas que outrora competiam por inovação agora disputam monopólios. Plataformas digitais lucram com a erosão da atenção humana. Parte considerável da indústria alimentícia expande sua margem vendendo ultraprocessados que degradam a saúde pública. Na agricultura, a busca por produtividade tem envenenado os solos e contaminado os rios.

A imagem mostra uma vista urbana com edifícios modernos refletidos em uma fachada de vidro. À esquerda, um edifício de vidro com janelas quadradas reflete outros prédios e árvores ao redor. À direita, há um edifício alto com uma estrutura em camadas. O céu está claro, e a luz do sol ilumina a cena, criando um contraste entre os edifícios e a vegetação ao redor. Algumas pessoas e carros estão visíveis na rua.
Prédios na avenida Brigadeiro Faria Lima, região comercial que concentra imóveis e escritórios de alto padrão em São Paulo - Rubens Cavallari - 19.jul.24/Folhapress

O trabalho foi reconfigurado em microtarefas desprovidas de propósito. E os próprios consumidores, alimentados por pequenas doses diárias de dopamina, são exauridos ao ponto da apatia. O ciclo de crescimento virou uma espiral de exaustão e, ironicamente, a criatura está se virando, cada vez mais, contra o criador.

Essa autofagia não é falha. É consequência lógica de um sistema que, ao perder qualquer limitação ética ou institucional, transforma relações, corpos, natureza e tempo em mercadoria. Na ausência de freios coletivos, o capitalismo tornou-se uma versão extrema de si mesmo. Tornou-se um sistema que recompensa ainda mais a extração em detrimento da preservação, o curto prazo em vez do longo e a aparência no lugar do conteúdo.

Ao maximizar eficiência, empurramos indivíduos para jornadas de produtividade incessante e produzimos cidadãos deprimidos. Em nome da liberdade de mercado, assistimos à asfixia da própria liberdade de tempo, de escolha e de imaginação.

Enquanto isso, as instituições que deveriam oferecer contrapeso se adaptam ou simplesmente se rendem. O Estado é capturado por lobbies, a imprensa por cliques e a educação por credenciais. Em vez de frear os excessos, muitas vezes tornam-se cúmplices da engrenagem.

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Mesmo diante de um esgotamento evidente, a resposta dominante continua sendo mais estímulo ao consumismo desenfreado e sem propósito. Mais propaganda e mais promessas de que a próxima compra preencherá o vazio deixado pela anterior.

No final, à medida que o sistema oferece mais produtos, serviços e distrações, entrega menos sentido. E o ser humano, no centro dessa engrenagem, começa a perceber que não há delivery capaz de entregar pertencimento nem aplicativo que substitua o toque da convivência mútua.

O espírito humano se nutre de vínculos, reconhecimento e sentido. Ele precisa de tempo para contemplar, espaço para imaginar e silêncio para refletir. Ele precisa das dimensões da vida que não cabem num carrinho de compras.

No fundo, o que está em jogo não é apenas o destino de um sistema econômico, mas o de uma civilização inteira que, ao perder o controle do que consome, está consumindo a si mesma.

O texto é uma homenagem à música "Dos Guardenias?", de Isolina Carrilo, interpretada por Buena Vista Social Club.

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