Por Juliano Spyer*
Ainda é um mistério como eu, um intelectual de esquerda, me tornei um viciado em artes marciais mistas (MMA, na sigla em inglês) nos últimos anos. O relato do escritor Sam Graham-Felsen, publicado na New York Times Magazine em 25 de maio, me ajudou a refletir sobre isso e entender melhor o que está acontecendo comigo – um homem heterossexual de 54 anos – e com o planeta, que se entrincheira principalmente no campo dos figurinos e no afastamento ideológico entre homens e mulheres.
Comecei a assistir aos eventos do UFC em 2018. Estava de volta ao Brasil depois de oito anos vivendo na Inglaterra, por conta do mestrado e doutorado. Minha esposa permaneceria lá por mais dois anos. Eu me afastei das redes de amizade que tinha em São Paulo e, estando casado, não queria “cair na noite”. Durante o dia, me senti produtiva, em um trabalho que me motivou e desafiou intelectualmente. As noites, porém, eram mergulhos no estômago de um mundo morto e sombrio. Todas as noites eu morria – ou me senti morto; de manhã, renascia, e a vida retornava.
Estava clinicamente deprimido. Demorei a perceber e pedir ajuda porque nunca tinha sido depressivo. Em um aniversário recente, em que eu forcei a convidar velhos amigos para um jantar, eles estranharam saber que eu estava sozinho. A imagem que deixei entre meus contemporâneos de faculdade era a de uma pessoa cheia de amigos, comunicativa, com vida social mais do que plena. O artigo de Graham-Felsen me ajudou a ver esse processo em perspectiva, e a conectar minha experiência a características como a emergência da “manosfera” (a esfera masculina, em inglês) e também à polarização ideológica entre gêneros.
Vou chamar Graham-Felsen, o autor desse artigo, de Sam daqui em diante – não para sinalizar intimidação, mas porque seu sobrenome é longo, difícil de escrever e tão formal demais.
Sam parece ser um pouco mais jovem do que eu. A primeira parte de seu artigo registra uma aparência conhecida, especialmente nos EUA, como “solidão masculina”. Ao se casarem, os homens se distanciam de suas redes de amizade – todos fazem isso ao mesmo tempo. Há o trabalho, as ambições, o esforço desenvolvido para progredir na carreira. O tempo que sobra é dedicado à esposa e aos filhos. E, enquanto as mulheres, por motivos que ainda não compreendendo bem, mantêm ou renovam suas redes de solidariedade, os homens se afastam e, como um jardim abandonado, deixam de cultivar os vínculos. O jardim vira um cenário pós-apocalíptico de ervas orgânicas. Mas Sam vai além desse tema.
A filosofia de vida a partir do sofrimento de David Goggins
Ele conta que, na medida em que se levou dois amigos e começou a ter crises de baixa autoestima que impactaram seu trabalho como escritor, buscou companhia e orientação em podcasts, especialmente aqueles que falam sobre meditação e autoajuda. Percebemos que os influenciadores eram poucos, basicamente as mesmas coisas e giravam nos mesmos circuitos. E notou que muitos homens que, como ele, buscavam companhia e respostas em podcasts acabaram, ocasionalmente, chegando ao podcast Joe Rogan Experience .
Foi aí que o relato de Sam lançou nova luz sobre a minha própria experiência. Joe Rogan é alguém que passou a acompanhamento ocasional – nunca fui fã, mas ouvi, com mais regularidade, dois criadores de conteúdo do seu círculo mais intelectualizado: o neurologista de Stanford Andrew Huberman e Lex Fridman , um pesquisador do MIT especialista em inteligência artificial. Além de pertencerem às mesmas galáxias de produtores de conteúdo, ambos são ex-progressistas, rejeitam rótulos, se apresentam como “não políticos”, mas são críticos das práticas de cancelamento nas universidades motivadas pelo identitarismo, e adeptos da filosofia de um ex-militar chamado David Goggins .
Vale falar brevemente sobre Goggins e o modelo de masculinidade que ele representa. Goggins era um jovem negro obeso, renunciado a um emprego subalterno como dedetizador de produtos baratos. Um dia, ouvi na rádio um chamado para o programa de treinamento dos Navy SEALs, grupo de elite das Forças Armadas. Não apenas consegui perder um terço do peso em um mês, como sobreviveu ao treinamento brutal, documentação à tortura. (Pense no programa Legendários , que tem se popularizado no Brasil.) Depois de participar de operações militares com os Navy SEALs, possivelmente em zonas de conflito como o Afeganistão e o Iraque, ele voltou aos EUA, aposentou-se e tornou-se um ironman , atleta que compete em provas de resistência extrema.
Como Sam, cheguei aos livros de Goggins após ouvi-lo no podcast de Huberman. Li seu livro e, estimulado por essa filosofia da dor e do sofrimento, entrei – por pouco tempo – em uma dieta para perder peso com exercícios físicos. Colei post-its pelas paredes com frases como “Você vai desistir de novo?” e outras que tenho vergonha de compartilhar.
Diferente de mim, Sam não desistiu. Após ser “mordido” pelo vírus Goggins, começou a correr e, por três anos, manteve uma rotina intensa de exercícios – até mesmo durante uma internação hospitalar.
A análise que Sam fez dessa experiência trouxe insights originais. Um deles: o podcast de Joe Rogan se assemelha às conversas entre homens, que inicialmente desconexas, mas evoluíram para falas radicalmente honestas. Rogan se tornou o substituto massificado dessa experiência masculina que hoje é mais rara de encontrar. Sam também nota que essas conversas derivam invariavelmente do tema da busca da felicidade – e que a resposta, quase sempre, passa por três elementos: psicodélicos, jiu-jitsu brasileiro e uma rotina exaustiva de exercícios físicos.
Lembro de uma entrevista no podcast de Huberman em que um executivo do Vale do Silício, infeliz apesar do sucesso, pediu ajuda. A receita foi direta: “Pare de fumar maconha e ande de bicicleta ergométrica até vomitar – todos os dias.” É assim que muitos homens falam sobre exercícios: como sacrifício a um deus da masculinidade. Mesmo na chuva, mesmo de ressaca, o suor é diário. É uma espécie de religião.
Não sou ouvinte associado de Rogan, mas reconheço esse ethos no Huberman e Fridman. Ambos evitam vínculos afetivos profundos com mulheres – não acham que vale a pena dedicar tempo aos relacionamentos. Fridman, por exemplo, tem uma rotina insana diária: treinos de jiu-jitsu, participação em equipes e projetos de pesquisa no MIT e gravação de um dos podcasts mais ouvidos do mundo, com convidado como Donald Trump.
(Curiosamente, ouvi Jones Manoel, influenciador de esquerda, falar sobre sua rotina de exercícios como um sacrifício ao deus da masculinidade. E vejo também Yago Martins, pastor neocalvinista, rendido à mesma idolatria aos exercícios e esportes de combate.)
Selfie no espelho ajuda a autoestima, mas não resolve a solidão
O relato de Sam já teria sido significativo por associar a solidão masculina à atração pelos esportes de combate, e por sugerir que isso está relacionado com uma ocorrência ao identitarismo. Existe, sim, uma desconfiança – essa é uma reflexão minha – de que muitos defensores dos direitos humanos, especialmente entre os progressistas, vivem vidas confortáveis e falam para plateias que os aplaudem, sem nem cogitar passar uma semana na quebrada para entender como seus discursos soam oferecidos nesses espaços. Mas Sam vai além.
Sam supera a fase Goggins. Viveu-a intensamente por três anos, mas admite que não encontrou felicidade ali. Fala da vaidade por trás das selfies de corpo definido. Mas confessa que continuou indo às lágrimas, inexplicavelmente, ao ver gestos de companheirismo masculino. Cita, por exemplo, o episódio “ Breaking Point ”, da série Untold , em que um tenista veterano ajuda o amigo mais jovem, em crise de pânico na véspera de um jogo decisivo. Eu me reconheço nisso. Chorei ao ver os atos de companheirismo e sacrifícios do personagem de Tom Hanks em O Resgate do Soldado Ryan , ou quando Will Smith entra num prédio infestado de zumbis para salvar seu cachorro no filme Eu Sou a Lenda .
Sam encerra seu relato dizendo um novo podcast chamado Man of the Year , feito por dois melhores amigos. Eles discutem a solidão masculina e propõem práticas simples para reverter o quadro. Uma delas é retomar contato com velhos amigos da seguinte forma: mandar uma mensagem por semana, fazer uma ligação por mês e encontrar-se presencialmente uma vez por trimestre. Sam registra, no final de seu artigo, uma sensação de felicidade apenas por encontrar um amigo para assistir ao show de um artista que os dois gostaram enquanto estavam na universidade. Nada de especial aconteceu; nenhuma conversa transformadora; mas fez muito bem.
Recentemente, por coincidência, conheci uma pessoa que é amiga de um grande amigo meu que mora literalmente a um quarteirão de mim. Nossa amizade de anos, moramos juntos no início de nossas carreiras, tivemos conversas profundas que hoje só acontecem – pelo menos comigo – em sessões de terapia. Esse novo conhecido contou que meu velho amigo o procurou pedindo ajuda. Fiquei enciumado.
Alguns dias depois, escrevi para esse amigo. Ele respondeu que estava viajando, resolvendo questões de trabalho. E cerrou com o clássico “vamos marcar”, que é quase sempre uma recusa polida. Interpretei aquilo como algo pessoal. Mas lembrei-me do que Sam escreveu: evitamos procurar amigos para confessar vulnerabilidade por medo de sermos vistos como fracos, e também evitamos procurá-los quando ouvimos que eles estão atravessando um momento, por medo de sugerir que eles próprios estão em busca de ajuda. E assim o ciclo da solidão se perpetua.
Algumas semanas se passaram. Em pensamento, mandei esse amigo “se foder”. Quem ele pensa que é para desprezar meu esforço de aproximação? A resposta dele me fez sentir fraco e cuidadoso. Mas ontem, sem pensar muito, fiz mais uma tentativa – dessa vez, mais explícita. Escrevi: "Homens maduros estão sufocando por falta de amizades. Não esquecem do nosso café." Pouco depois, ele respondeu: "Não esqueça! Mesmo!"
Talvez ele aplique. Talvez não. Mas só de ter voltado a insistir, de ter aqui com todas as letras, mesmo brevemente, o que está em jogo – e de ter recebido uma resposta que não foi silêncio –, me senti melhor. Senti que, por um breve instante, quebrei o ciclo. E isso, por enquanto, basta.
*Juliano Spyer é antropólogo, etnógrafo, membro da equipe do projeto 'Why We Post' da University College London, colunista da 'Folha de S.Paulo' e autor, entre outros livros, de 'Crentes: Pequeno manual sobre um grande fenômeno' e 'Povo de Deus: Quem São os Evangélicos e Por Que Eles Importam'.
Nenhum comentário:
Postar um comentário