segunda-feira, 9 de junho de 2025

Luís Fernando Tófoli A segurança no trânsito por um fio de cabelo, FSP

 O projeto de lei 3.965/2021 tinha como objetivo original permitir a destinação de recursos arrecadados com multas de trânsito para o custeio da habilitação de condutores de baixa renda. No entanto, sua versão final, aprovada em 30 de maio último no Congresso Nacional, incluiu a exigência de exame toxicológico de janela de 90 dias —feitos com cabelos, pelos ou unhas— para todos os candidatos à primeira habilitação nas categorias A e B. O Brasil reedita assim, em escala ampliada, um modelo caro e ineficaz já aplicado a motoristas profissionais.

Entre março e dezembro de 2016, apenas 1,6% de mais de 1 milhão de exames realizados nas categorias C, D e E deu positivo, um número muito mais baixo do que o indicado por estudos realizados com testes de urina de caminhoneiros brasileiros (cerca de 8% a 9%). Isso sugere que os condutores adiam a renovação ou suspendem o uso por algumas semanas para escapar do laudo. Mesmo assim, cerca de 3,3 milhões de profissionais permaneciam sem apresentar o exame até o fim do ano passado.

Veículos usados por autoescola para habilitar novos motoristas; deputados aprovam projeto que exige exame toxicológico de novos condutores - Rubens Cavallari - 29.jul.20/Folhapress

Se a regra alcançar candidatos das categorias A e B, a demanda anual saltará para cerca de 7 milhões de testes —um aumento de 60%. Um processo formativo que já é caro se tornará ainda menos acessível, sem falar no risco da criação de um mercado de fraudes.

Do ponto de vista científico, o método também falha em sua finalidade. A janela de 90 dias ignora a relação temporal entre consumo e direção. A literatura revisada não oferece evidência de que rastrear longos períodos de uso reduza acidentes quando aplicado indiscriminadamente na emissão de carteiras.

O único cenário em que estudos identificam benefício é o de motoristas já flagrados dirigindo sob influência de drogas; nessas situações, o exame integra programas de reabilitação e monitora recaídas, contexto totalmente diverso de uma triagem populacional.

Polícia Rodoviária Federal promove ação de saúde para caminhoneiros

Pacientes em tratamento com cannabis medicinal representam outro ponto sensível. Estima-se que mais de meio milhão de brasileiros utilizam derivados da planta com prescrição regular. O THC desaparece do sangue em poucas horas, mas persiste no cabelo por meses; exigir laudo negativo significa excluir condutores medicados, confundindo uso terapêutico com recreativo e ferindo o direito à saúde.

Além disso, a droga mais associada a acidentes automobilísticos não está incluída neste tipo de exame: o álcool. Estima-se que morra um brasileiro a cada hora em consequência de colisões ligadas à bebida ao volante.

A comparação internacional reforça o alerta. União Europeia, Reino Unido, Austrália, Canadá e Estados Unidos concentram fiscalização em blitz com fluidos corporais para flagrar influência aguda e o teste capilar aparece apenas em programas de reabilitação. Nenhuma democracia exige de candidatos à habilitação a entrega de mechas de cabelo como condição para dirigir um veículo de passeio.

A insistência brasileira pode se explicar por outro vetor: dinheiro. O mercado de exames já movimenta anualmente centenas de milhões de reais e vai crescer com a nova lei. Reportagens apontaram um lobby vigoroso de laboratórios na tramitação, incluindo a difusão de estimativas otimistas sem o respaldo de revistas científicas sobre uma suposta queda de acidentes.

Investimentos em radares, expansão da fiscalização do uso de substâncias durante a condução, melhoria de condições de trabalho e tratamento de dependência rendem mais vidas salvas por real gasto. Antes de sancionar o projeto, convém lembrar que segurança viária exige políticas baseadas em evidência, equilíbrio de direitos e transparência —e não gestos grandiosos que trocam fiscalização efetiva por conforto estatístico. O exame obrigatório para novas CNHs falha nessas três frentes e, por isso, precisa ter seu texto vetado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

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