terça-feira, 8 de agosto de 2023

Vera Iaconelli - A psicanálise, essa bobagem, FSP (definitivo)

 Os cientistas de fins do século 19 se orgulhavam da correção de seus métodos. Cada vez mais regidos pela razão e pelas evidências, suas pesquisas buscavam se afastar da intuição e das superstições próprias dos períodos anteriores. Freud, jovem neurologista à época, era um entusiasta dos ideais iluministas, os quais nunca abandonou.

Mas no meio do caminho da ciência havia uma pedra chamada histeria. Conhecido desde a Antiguidade, o quadro já tinha recebido interpretações que iam da circulação do útero dentro do corpo feminino à influência dos demônios. A primeira hipótese batizou o fenômeno: hystera, em grego, significa útero. Sugiro o livro "Histeria", de Silvia Alonso e do saudoso Mário Fuks (Casa do Psicólogo, 2005).

Gosto de um exemplo: o paciente apresenta uma paralisia total de um braço, que se encontra como um peso morto, insensível ao calor, à perfuração, sem qualquer reflexo, mas que "volta à vida" sem nenhuma explicação. Situação exasperante para um neurologista, que não tem como entender a lógica entre essa paralisia e o que se sabe sobre o sistema nervoso.

Embora esteja presente em homens, foram as mulheres que levaram a fama de histéricas, enlouquecendo os doutores que não sabiam como abordar sintomas tão insólitos quanto inconstantes. Sugiro o filme "Augustine" (Alice Winocour, 2012), no qual vemos um Charcot atônito e incansável tentando dar conta da incompreensível demanda de suas pacientes.

Jean Martin Charcot (1825-1893)
Jean Martin Charcot (1825-1893) - Wikimedia Commons

Daí a coragem de Freud em se perguntar a que lógica responderia esse e outros sintomas histéricos que não a da ciência conhecida até então. A maior façanha de Freud foi sustentar com sua genialidade o desconcerto diante do não saber. Breuer, o primeiro a tratar um caso de histeria com relativo sucesso, largou sua paciente Bertha Pappenheim falando sozinha quando os afetos da jovem ficaram densos demais. Sugiro "Estudos sobre a Histeria" de Breuer e Freud (Companhia das Letras, 2016).

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Dizemos que as histéricas fundaram a psicanálise na medida em que Freud teve a decência de escutá-las em vez de desacreditar seu sofrimento. Nesse processo, ele descobriu as leis do inconsciente, suas formas de expressão, seu tratamento e um campo de pesquisa centenário que modificou a forma como pensamos a nós mesmos e a cultura].

Dando um salto no tempo, vimos Lacan levar às últimas consequências a ética da escuta e do cuidado proposta por Freud. Para ele, o destino final do método iniciado pelo vienense não seria a erradicação do sintoma em si, mas o reconhecimento da alienação pelo próprio sujeito. Alienação que o sintoma denuncia e mantém, ou seja, aquilo que não queremos saber em nós, mas que carrega nosso desejo e nossas identificações mais primárias.

O fim de uma análise não é o fim dos sintomas, tampouco é o fim do desamparo inerente à nossa existência. Ela é o reconhecimento radical desse desamparo. E é a assunção de um jeito menos sofrido de lidar com ele. O fim de uma análise aponta para algo que nos irmana, pois não temos como ignorar que somos um entre outros humanos, igualmente desamparados. Sugiro "Maneiras de Transformar o Mundo", de Vladimir Safatle (Autêntica, 2020), uma das mais acuradas descrições desse momento final e de seus efeitos políticos.

Nossos divãs estão repletos de médicos que sabem que a cura não é feita só de protocolos e que tanto a adesão ao tratamento quanto seus resultados são atravessados pela subjetividade dos profissionais e dos pacientes. Sugiro o livro "A Ordem Médica", de Jean Clavreul (Brasiliense, 1980).

O tema da cientificidade da psicanálise é antigo e fascinante, mas nem tudo está à altura dessa discussão. Sugiro, por fim, o livro de Paulo Beer "Psicanálise e Ciência: um debate necessário" (Blucher, 2017).


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