sexta-feira, 2 de abril de 2021

Arriscamos nos tornar a democracia do palavrão, e parecemos estar gostando disso, Fernando Schüler, FSP

 A Lei de Segurança Nacional voltou a ser pop. Foram 77 processos em 2019 e 2020, contra 44 nos quatro anos anteriores. Ela vem chancelada pelo Supremo, que ao utilizá-la dá a senha de que a vê como compatível com a Constituição. Mas é a reação das pessoas ao seu uso que revela muito sobre o que nos tornamos.

A lei vem sendo usada por diferentes lados do mundo político. Pelo Executivo, pelo Supremo e mesmo pelo Congresso. Deste último foi, aliás, seu uso mais patético (se é possível classificar isso), naquela tentativa de enquadrar o perigoso humorista Danilo Gentili por um tuíte “convocando” o povo brasileiro para “socar os deputados”.

A Câmara caracterizou o tuíte como “grave ameaça ao livre exercício do Congresso Nacional”. Aparentemente estavam errados, visto que ninguém atendeu à convocação de nosso humorista revolucionário. Mas enfim, pela lógica da máxima birutice nacional (ou quem sabe de um país que perdeu o senso de humor), ele deveria ser preso, não?

O Executivo também entrou de cabeça. A lei passou a ser usada como uma forma de intimidação. Um caso curioso foi o do advogado Marcelo Feller, acusado de “expor a perigo de lesão o regime democrático e a pessoa do presidente”, nos termos da LSN, por ter chamado Bolsonaro de genocida na TV.

Lendo a papelada do processo, impressiona, à parte o gesto autoritário, a incrível perda de tempo (e dinheiro do contribuinte). Dias depois, o caso foi encerrado pela juíza Pollyanna Maciel, que não identificou crime nenhum ali e disse algo essencial para este debate: que a lei só deve servir para “casos extremos”, que possam “verdadeiramente atingir” a segurança do Estado. E deu por resolvida a questão.

Se estes casos envolvendo os críticos do presidente, em geral, não têm prosperado, o mesmo não se dá nos que atingem o outro lado do jogo. Os casos são conhecidos. Derivam, em geral, dos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, conduzidos pelo Supremo.

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São inúmeros casos. Um deles envolveu um jovem negro de Salvador, o “mito show”, que costumava animar as passeatas bolsonaristas com uma coreografia típica do Carnaval baiano. Um dia resolveu ir para Brasília, com uma mão na frente e outra atrás, e berrar contra o Supremo. Foi em cana, e até hoje tenta se virar por aí com uma tornozeleira eletrônica.

Caso mais notório é o de Oswaldo Eustáquio, preso por meses. Em geral, ele é apresentado como “blogueiro bolsonarista” e isto parece suficiente. Recentemente, a Polícia Federal disse num relatório não ter encontrado elementos contra os acusados no inquérito em que foi arrolado.

Ler sobre estes casos todos nos dá o retrato de um país doente e intolerante. São basicamente delitos de opinião, frutos da raiva política. Xingamentos, ameaças, discursos de ódio e palavrões. É isto. Nos tornamos a democracia do palavrão.

O que mais chama a atenção é a seletividade das pessoas sobre o tema. É como se houvessem palavrões “autorizados”, e mesmo virtuosos, e palavrões marginais. Quem tem a hegemonia cultural dita estas coisas. O mesmo vale para o uso da LSN. Com honrosas exceções, quando ela é usada do lado A do espectro politico, o lado B vibra. E vice-versa.

Minha tese é que o debate em torno do tema diz muito sobre a fragilidade de nossa cultura democrática, à direita e à esquerda. E que talvez não se chegue a conclusão nenhuma sobre o que fazer com a Lei de Segurança Nacional

De minha parte, faria o que sugeriu a pesquisadora Clarissa Gross, da FGV, dizendo que não cabe ao Estado punir o simples uso da palavra, mesmo se uma ameaça. “Ela tem que ser crível.” Nas agressões ao STF, demandaria “indícios de que a pessoa de fato terá condições de tomar medidas” impedindo o trabalho da corte. Respeitado este critério, a maioria dos atuais usos da lei cairiam no vácuo.

A solução óbvia seria a aprovação no Congresso de uma nova lei, adaptada aos tempos democráticos. O ponto é que não existe o mínimo consenso no país sobre o tema. O mais provável é que o Supremo decida a parada, a curto prazo, e ficam as perguntas: a lei será clara? Vai valer pra todo mundo? Teremos um Estado que trate a todos com igualdade?

Estamos muito longe do consenso mínimo que países como os Estados Unidos construíram em torno da Primeira Emenda, ou como a Alemanha, em torno da nova legislação combatendo o discurso de ódio na internet (NetzDG).

Enquanto isto não ocorre, vamos nos arrastando (para o deleite do general Figueiredo, onde estiver), com a velha e rasgada Lei de Segurança Nacional.​​

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