Sinal dos tempos: leio no The Guardian que os seis livros finalistas do International Booker Prize não são obras de ficção em sentido puro. Só em sentido impuro.
Na teoria, o prêmio é dedicado a obras de ficção traduzidas para o inglês. Mas o júri, depois de ler 125 candidatos, abandonou as narrativas clássicas do “era uma vez...”.
Optou por textos em que a ficção e a não ficção se reforçam mutuamente, como no livro do chileno Benjamin Labatut (“When We Cease to Understand the World”, uma obra-prima que espero comentar em breve para esta Folha) ou no ensaio historiográfico de Éric Vuillard (“The War of the Poor”, que já comentei).
O fenômeno não é inteiramente novo. Há vários anos que esta “fome de realidade” (expressão feliz de David Shields) se tem imposto na literatura, como se as formas narrativas tradicionais fossem insuficientes para captar essa mesma realidade.
Além disso, se as séries de TV representam no século 21 o mesmo papel que os folhetins literários no século 19, é precisamente aí, nas plataformas de streaming, que encontramos o fulgor do romance clássico.
Quem assistiu a “The Wire” ou “Show Me a Hero”, ambos de David Simon (o maior escritor americano vivo), não está muito longe da imersão total que é possível experimentar com a Paris de Balzac ou a Londres de Dickens.
Mas o fenômeno não é exclusivamente literário. O cinema segue o mesmo caminho e o Oscar de melhor filme consagrou um representante desse hibridismo. Falo de “Nomadland”, filme de Chloé Zhao que combina elementos ficcionais (a personagem Fern, interpretada por Frances McDormand) com nômades reais que sobrevivem pela América em seus trailers.
Numa primeira leitura, o filme é um retrato dos deserdados do sonho americano, condenados a uma vida de errância e a trabalhos temporários e precários. Fern é um deles: viúva, desempregada, sem possibilidade de suportar uma casa, ela encontra na estrada um modo de subsistência —material e espiritual.
E é por meio dela que conhecemos os rostos e as histórias de pessoas comuns que vivem à margem desse sonho. Ou não vivem? Confesso: o que me interessou em “Nomadland” não foi apenas a tese sociológica da obra. Foi também encontrar, pelas mãos de uma diretora chinesa, o mais recorrente
tema da cultura americana: a vontade de partir, de escapar, de testar os limites da fronteira.
De “Huckleberry Finn” à geração beat, das demandas espirituais de Thomas Wolfe aos “road movies” dos "seventies", a vastidão americana sempre foi o palco dessas fugas redentoras.
Quando viajamos com Fern, encontramos de tudo: gente arruinada pela crise financeira de 2008; veteranos do Vietnã psicologicamente mutilados que encontraram na estrada a quietude possível dos seus dias.
Mas encontramos também quem pretendeu libertar-se da “ditadura do dólar”, das expectativas sociais que o mundo tem sobre nós, da inexorável sombra da morte.
Um dos momentos mais brilhantes do filme acontece quando uma nômade explica aos restantes por que motivo se entregou à estrada. Aconteceu depois da morte de um amigo, que nas horas derradeiras lhe pediu para que ela vivesse livremente.
Ou, como diria Henry David Thoreau, outra alma errante, para que “vivesse deliberadamente”, enfrentando apenas “os fatos essenciais da vida”.
O mesmo acontece com Fern, com a sutil evolução da personagem: o que no início era um estado de necessidade se converte numa segunda natureza —uma forma radical de liberdade que já não admite as amarras do passado.
As curtas estadas na casa da irmã e do amigo Dave, onde ela poderia encontrar uma nova família ou um novo amor, são a prova final de que não há retorno.
A culpa talvez seja da pandemia. Talvez seja desse ano de clausura em que tenho viajado ao redor do meu quarto, como diria o velho Xavier de Maistre.
Ou talvez a culpa seja de uma cultura política de vigilância e paternalismo constantes, que transforma qualquer ser humano em besta de carga ou em criança retardada, sem deixar espaço para a autonomia individual e para as surpresas da contingência.
Mas é impossível não olhar para as vidas de “Nomadland” e, para lá de toda a tragédia, encontrar naqueles rostos a definição mais pura da nobreza e da liberdade.
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