Para entender os motivos que justificam a existência do inquérito instaurado pelo Superior Tribunal de Justiça há que se retroceder a 2015 e 2016. Eram os primeiros anos da Lava Jato e, em razão dos sistemáticos vazamentos, vivia-se diuturnamente com notícias e boatos sobre o conteúdo de delações e dos próximos alvos da operação.
Nesse período, o STJ passou a viver verdadeiro clima de caça às bruxas. A partir de delações seletivamente vazadas, leviandades absolutas fizeram com que ministros da corte fossem indevidamente investigados.
Há que se lembrar que, não por acaso, esse era o tempo em que começavam a aportar no STJ, em larga escala, medidas judiciais contra as prisões da Laja Jato em Curitiba. E para uma operação que tinha como método usual prisões alongadas e irrevogáveis visando, precisamente, a obtenção de delações, a eventual soltura de investigados representava obstáculo perigoso ao seu êxito.
Assim, procurou-se de todas as formas pressionar os ministros do STJ a manter as muitas vezes desnecessárias prisões. Ainda que tais métodos não tenham alcançado seu desiderato, a tentativa de intimidação não pode passar em branco sem que haja, ao menos, uma investigação sobre essas ações, de forma a desvelar as eventuais tramas ocorridas, às escuras, contra uma das mais altas cortes de Justiça do país.
É disso que cuida o inquérito 1.460. Aberto a partir de determinação do presidente do STJ, Humberto Martins, com o objetivo de apurar tentativas de intimidação de ministros, coloca-se como mecanismo para combater o chamado “contempt of court” —o desrespeito à corte, entendido como o ataque à sua autoridade e que pode ser materializado em tentativa de violação da independência jurisdicional dos seus componentes.
No Brasil, o STF e o STJ têm dispositivos regimentais semelhantes (artigos 43 e 58, respectivamente), que preveem a possibilidade de abertura de inquérito a ser conduzido internamente, sem depender da iniciativa ou aquiescência da Procuradoria-Geral da República —que, no caso do STJ, aliás, manteve-se silente sobre os fatos agora investigados.
A apuração, portanto, antes de se revestir de medida que busque subjugar os envolvidos, trata de proteger a magistratura —naquilo, aliás, que esta possui de mais sagrado: a independência funcional de seus membros.
É certo que provas eventualmente tidas como ilícitas, condição que se alega em relação às mensagens de aplicativo de procuradores obtidas por um hacker, nunca poderão ser utilizadas para condenar quem quer que seja. Não há que se transigir em relação a isso, jamais. Seja contra quem for, o Estado tem obrigação de assegurar garantias tão caras a uma sociedade democrática.
Parece-nos ponto pacífico, porém, que tais provas, ainda que ilegais, podem ser usadas como meio de defesa, seja para comprovação da inocência de acusados, seja para recomposição da honra e das reputações covardemente vilipendiadas.
Esse é o caso da investigação levada a cabo pelo STJ: um mecanismo de defesa ao “contempt of court” para revelar esses ataques, investigar os meios pelos quais realizados e, assim, repor a verdade, restaurando sua autoridade como tribunal, a qual tem como um dos pilares a dignidade de seus magistrados.
Nesse contexto, não poderíamos deixar de reconhecer a validade e a necessidade de tão importante investigação, cuja condução ficará a cargo do ministro Humberto Martins, magistrado reconhecidamente sério e legalista.
O inquérito contra os procuradores da Lava Jato no STJ tem respaldo jurídico? NÃO
Depois que a ministra Rosa Weber determinou —em decisão densa e irrespondível, tomada no habeas corpus nº 198.013 impetrado em favor do procurador da República Diogo Castor— a paralisação do inquérito instaurado no STJ ficou fácil responder a esta pergunta. Mas o fato é que, além do regozijo pela obtenção da liminar, os procuradores que integraram a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba devem comemorar o fato de as “10 medidas contra a corrupção” não terem sido aprovadas.
É que uma delas restringia o emprego do habeas corpus, permitindo seu manejo só para os casos de prisão. Tivesse vingado a proposta autoritária e antidemocrática que esses membros da força-tarefa queriam emplacar como um avanço na luta contra a criminalidade, eles mesmos não poderiam ter se valido do remédio que queriam amesquinhar. É o velho ditado: “pimenta nos olhos dos outros...”. Sim, eles estão aliviados porque podem, como qualquer mortal, se valer do habeas corpus. Viva a democracia!
A República tem regras que balizam o funcionamento da atividade repressiva estatal tanto para viabilizá-la como para, limitando-a, impedir abusos e arbitrariedades. Se um procurador da República vislumbrou qualquer prática criminosa perpetrada por um ministro do STJ, ele tem o dever de comunicar o fato a quem tenha atribuição para investigá-lo e não investigar por conta própria. Se o fez às escondidas, pode incorrer em crime. O ministro Eros Grau, citando o grande Evandro Lins e Silva, advertiu: “Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinquente” (habeas corpus nº 94.408).
Perseguição e investigações secretas, fora do figurino legal, são a antítese do Estado de Direito e não podem ser toleradas. Correto, portanto, o desejo de que os que, eventualmente, praticaram atos ilegais sejam investigados, mas eles também têm direitos e garantias que precisam ser respeitados.
A decisão da ministra Rosa Weber, que determinou a paralisação do inquérito no STJ, esclareceu algumas coisas: 1 - o regimento interno do STJ não tem o mesmo status do regimento do STF, que, pela Carta anterior, tinha força de lei e foi recebido pela atual Constituição. Assim, a portaria instituída pelo STJ não ampara o inquérito; 2 - o STJ não tem competência para, por vontade própria, investigar membro do Ministério Público Federal; e, mais importante, 3 - não pode fazê-lo com base nas interceptações ilícitas, pois a Constituição Federal proclama serem “inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (art. 5º, inc. LVI).
Sobre o tema da inadmissibilidade da utilização das provas ilícitas para condenar, ou mesmo investigar, ninguém melhor (e mais insuspeito) que o ex-ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff (PT), professor José Eduardo Cardozo, para dizer que nossas autoridades “não devem usar o ilícito como prova para punir, mas investigar seriamente os abusos evidentes” (“Operação Spoofing: verdades e mentiras”, site do Prerrogativas, em 14/4/2021).
Enfim, tinha razão Michel Foucault quando ensinava que as formas jurídicas interferem na descoberta da verdade. Se fosse permitida a tortura ou o uso de provas ilícitas para descobri-la, descambaríamos para um “vale-tudo” que abriria caminho para a selvageria. A conquista civilizatória do Estado de Direito, “rule of law”, não se compraz com a inobservância do figurino constitucional.
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