Quando compro carne moída, não estou nem aí para as preferências políticas do açougueiro, seu histórico policial ou sua "Weltanschauung" —estou interessado é nas almôndegas. E ajo com a mesma despreocupação quando mando consertar sapatos ou abasteço o carro.
Um kantiano severo talvez classifique minha conduta como imoral, já que, dependendo da interpretação, ao tratar açougueiros, sapateiros e frentistas apenas como um meio (e não um fim em si mesmo), eu estaria violando a segunda formulação do imperativo categórico. Mas acho que a maioria dos leitores não seria assim tão implacável.
Basta, porém, trocar a esfera das atividades mundanas pela dos prazeres intelectuais que o espírito patrulheiro toma de assalto as multidões. O exemplo mais recente dessa disposição veio da editora W.W. Norton, que decidiu suspender a distribuição de uma nova biografia de Philip Roth, que prometia ser um dos grandes lançamentos do ano, depois que seu autor, Blake Bailey, foi acusado de assédio sexual e estupro. Bailey também perdeu seu agente literário e editoras mundo afora já desistiram de traduzir a obra.
Não vejo diferença entre o açougueiro e o autor. Ainda bem, devo acrescentar. Se aquiescesse ao justiçamento moral, teria de privar-me de Aristóteles (escravagista), Eurípedes e Schopenhauer (misóginos), Shakespeare (antissemita), Céline e Heidegger (nazistas), Pound (fascista), Genet (bandido), entre centenas de outros.
Não defendo obviamente a impunidade. Se Bailey cometeu crimes previstos nos códigos, deve responder por eles, mas na Justiça, não nas livrarias. Existe uma razão por que os países civilizados passaram os últimos séculos criando e aprimorando sistemas judiciários para permitir julgamentos em que os réus tenham chance de defender-se.
Se um livro é bom, não há por que deixar de lê-lo, por maiores que sejam as restrições morais que façamos ao autor.
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