Fábio Giambiagi*, O Estado de S.Paulo
23 de abril de 2021 | 04h00
Há uma pergunta se firmando a cada dia: “Quantas mortes poderiam ter sido evitadas se a pandemia tivesse sido tratada de outra forma?”. Na democracia, a diversidade faz parte da paisagem: religiosa, sexual, ideológica, etc. Pouco importa se a pessoa lê a Bíblia ou o Corão; se é homem, mulher ou pertence aos grupos LGBT; ou se vota na direita ou na esquerda.
A tolerância, porém, exige limites. Sociedades têm regras de convivência – e o desprezo pela morte não se encontra entre elas. Não se concilia com a indiferença diante da morte. “Uma Nação é um projeto de vida em comum”, dizia Ortega. E não há nada em comum quando uma parte da sociedade trata com cinismo a vida da outra. Quando isso ocorre, algo fundamental se perdeu.
De nada adiantam invocações à unidade ou menções a deixar as desavenças de lado, quando é a própria atitude de uma parte da sociedade para com a outra a origem da desavença que impede o bom relacionamento entre os habitantes de um mesmo espaço. A defesa da vida precisa ser um valor unificador de uma sociedade – e isso se torna impossível diante da desumanidade manifestada por parte de alguns grupos. Não se transige com a barbárie – e é nela que estamos mergulhando. No resto da América Latina, mais de uma vez o grito se ergueu diante do inadmissível – quando “Ni olvido ni perdón” virou bandeira da Redenção.
O Brasil tem 213 milhões de habitantes e o mundo, 7,9 bilhões. Temos 2,7% da população mundial e mais de 12% do número total de mortos por covid. Na primeira semana de janeiro deste ano, o número de óbitos em 7 dias foi 19 mil nos EUA; 6 mil no Brasil; e 5 mil no Reino Unido e na Alemanha. Já na semana de 9 a 15 de abril, os óbitos nos EUA post Trump estavam em queda livre; na Alemanha foram de 2 mil; no Reino Unido saíram do noticiário – e no Brasil alcançaram 20 mil. Como em nosso país o número de óbitos aumentou mais que no conjunto do resto do mundo, a relação óbitos na semana no Brasil vs. mundo cresceu assustadoramente: nos últimos sete dias antes da entrega deste artigo ao jornal, de cada 100 falecidos por covid no mundo, 24 foram brasileiros.
Nesta semana, o Brasil deve chegar a 390 mil mortos de covid. Se a relação mortos por covid no Brasil vs. Mundo fosse igual à da população, deveríamos ter 80 mil. O “excesso” de mais de 300 mil mortos expressa nosso fracasso e nossa vergonha. Há uma chaga a encarar. Uma coisa é haver certa aglomeração por parte de quem precisa trabalhar para comer. Outra coisa é o descaso, as festas, o estímulo a um sentimento de falsa normalidade que beira a patologia. O que falhou? Por que não usamos devidamente as máscaras? Por que tivemos tantas aglomerações? Por quê? Há uma culpa que corrói a alma. Se continuarmos assim, daqui a algumas semanas o Brasil poderá ter perto de meio milhão de mortos na pandemia. Já em maio, chegaremos a 420 mil (e contando). É como três bombas de Hiroshima, onde morreram 140 mil pessoas.
Países lidam com tragédias – e precisam superá-las. O primeiro passo é reconhecê-las e assumir: isso não deve ocorrer mais. “Nunca mas” foi o Relatório Sábato para apurar o que ocorreu na Argentina depois de 1976. Nuremberg foi a resposta ao nazismo. Não é razoável, não é aceitável que tudo que foi descrito tenha ocorrido e não tenhamos tido a tempo as vacinas que poderíamos aspirar a ter – por nossa importância e pela nossa tradição sanitária. O Brasil terá que mergulhar nessas questões: Por que tanto absurdo? Por que tantas mortes? Por que não tivemos vacinas antes? Zeitgeist é o termo usado para definir o espírito de um tempo. A identificação das responsabilidades será imposta pelas circunstâncias, para poder olhar para o futuro tendo entendido como o País pôde ter tratado seu povo do jeito que tratou. Porque daqui a anos nossos netos nos perguntarão com ar incrédulo: “Como foi que isso aconteceu? O que vocês fizeram para evitar?”. Não poderemos ter o respeito deles se nossa resposta for apenas um silêncio triste.
*ECONOMISTA
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