Muitas vezes escrevi por aqui que Bolsonaro seria devidamente enquadrado pelo mundo político e pelas instituições. É o que aconteceu. Foi encaixotado. Nas últimas semanas, demitiu seu ministro “enragé”, Ernesto Araújo, trouxe o centrão de vez para dentro do palácio e mandou uma carta bem comportada sobre o clima para Joe Biden. Na imagem sarcástica que li em um artigo, dias atrás, virou um cão que muito ladra, mas não morde. Exagero?
Os apoiadores do presidente não gostam de ouvir essas coisas. Não era seu sonho de criança ver o capitão Marvel, que iria domar o sistema, ser por ele domado. Atado ao centrão e pisando em ovos para evitar um processo de impeachment. Seus odiadores, que não são poucos, também ficam nervosos, especialmente os que passaram os últimos anos anunciando, diariamente, nosso iminente ingresso em um Terceiro Reich tropical.
O enquadramento de Bolsonaro nada tem a ver com a discussão popularesca sobre o “funcionamento das instituições”, comum na internet. É evidente que nossas instituições são brutalmente disfuncionais. Nossa educação pública não funciona e produziu um vexame na pandemia. Nosso sistema estatal de saúde, que todos gostamos de elogiar, é tão eficiente que a primeira coisa que fazemos, quando sobra algum dinheiro, é contratar um plano privado de saúde.
Nosso Parlamento tem a maior dispersão partidária entre as grandes democracias; nosso sistema tributário é o 184º pior, no ranking Doing Business, do Banco Mundial, e nossa Justiça do Trabalho, além de cara e obsoleta, é produtora em série de insegurança jurídica para quem quer investir.
A lista poderia ir longe, mas não é o caso. O ponto é bastante específico. Por muitas razões que não cabem em uma coluna, o pacto democrático dos anos 1980 e a Constituição de 1988 produziram um arranjo institucional que tem se mostrado forte, tendo sido capaz de atravessar dois processos de impeachment, garantir rigorosa lisura eleitoral e alternância de poder.
Produziu-se também, para desgosto de muitos, a incorporação contínua de diferentes setores sociais que compõem a diversidade política do país.
A social-democracia teve seu momento, nos anos 1990, a esquerda teve seu (longo) tempo de poder, na década passada, o mesmo ocorrendo agora com uma direita de traço populista e autoritário, voltada ao conservadorismo de costumes. Todos ajustados, a gosto e contragosto, às regras do jogo e em aliança com o tradicionalismo político.
À parte isso, temos uma sociedade civil forte e uma imprensa livre. A mídia é partidarizada? Entrou no jogo político? Sim e não. Há quem tenha entrado, há quem tenha preservado sua independência. “O abuso faz parte do uso de qualquer coisa”, dizia James Madison, e não me parece que isso tenha sido muito diferente em relação a muitos governos no passado recente.
É neste plano que Bolsonaro governa. Seu decreto ampliando o direito à compra de armas foi suspenso pela ministra Rosa Weber; sua tentativa de suspender medidas de isolamento social nos estados foi barrada; CPI criada por ordem da corte. Bolsonaro já teve contra si mais ações no Supremo do que Lula, Dilma e Temer juntos.
Políticos aprendem rápido o caminho. Apenas a Rede, com seus três parlamentares, moveu 49 processos.
O que aconteceu, de verdade, é que Bolsonaro, nosso político outsider, entrou em modo sobrevivência. Sua agenda conservadora morreu sem sair da casca; a agenda econômica, com honrosas exceções (leilões do PPI, autonomia do BC) nunca foi muito além do mundo da retórica, e a conta vem chegando, como bem lembrou Marcos Lisboa em sua última coluna.
Bolsonaro vai se arrastando de crise em crise e tentando chegar vivo nas eleições de 2022. É provável que chegue, e é possível que termine, ao fim do dia, devolvendo o poder à esquerda.
Se fizer isso, terá completado seu ciclo: eleito pelo antipetismo, na onda moralizante pós-Lava Jato, terminará devolvendo não só a dignidade retórica, mas também ele mesmo, o poder, para o grupo político contra o qual construiu sua carreira.
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