segunda-feira, 19 de abril de 2021

'Não tenho direito de enjoar a bordo do Brasil', escreveu Otto Lara Resende em 1991, FSP (sensacional)

 

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SÃO PAULO

O primeiro contato de Otto Lara Resende (1922-1992) com o jornalismo se deu em 1939 quando, aos 18 anos, começou a escrever para o periódico católico O Diário, de Belo Horizonte.

A partir daí, nunca deixou de exercer a profissão, vivendo a maior parte de sua trajetória na imprensa do Rio de Janeiro.

homem branco veste terno e está em pé na calçada, com uma das pernas pra cima, como quem tenta ajeitar os sapatos
O jornalista e escritor mineiro Otto Lara Resende em imagem sem data - Divulgação

Otto integrou o quarteto de jornalistas que ele mesmo denominou como Os Cavaleiros de um Íntimo Apocalipse, grupo de intelectuais mineiros formado por Fernando Sabino (1923-2004), Hélio Pellegrino (1924-1988) e Paulo Mendes Campos (1922-1991).

Apesar da extensa trajetória como jornalista, foi somente no fim da vida que se tornou um cronista assíduo. Vinte meses antes de sua morte, Otto assumiu uma coluna na Folha, publicada três vezes por semana. Assinou mais de 600 textos ao longo desse período.

As três crônicas aqui publicadas, como parte da série Colunas Eternas, evidenciam o estilo do colunista, que Nelson Rodrigues apelidou como "loja de frases".

“A grande obra de Otto Lara Resende é a conversa; deviam pôr um taquígrafo andando atrás dele e vender suas anotações em uma loja”, afirmou o dramaturgo sobre seu amigo cronista.

Em seus textos breves, era capaz de dizer muito. Esse tom de conversa, unido ao talento para a boa frase, faz com que as observações do colunista extrapolem o comentário sobre a notícia do dia para revelar algo de essencial, e talvez atemporal, sobre a realidade brasileira.

Essas características estão presentes nos textos "Calma que o Brasil é nosso", "A bruxa do poeta" e "Vista cansada", em que Otto observa o Brasil do início dos anos 1990, mas poderia muito bem estar tratando do Brasil em 2021.

CALMA QUE O BRASIL É NOSSO

4 de julho de 1991

Pensar não dói. Mas pede esforço, treino. Como diria o Pacheco, o raciocínio é uma operação mental. Mas o sujeito aparece na televisão e, com a maior cara de pau, diz o que lhe vem à cabeça. Aliás, não vem; encontra porta fechada e vai-se embora. Cedinho, o cara sai de casa, leva consigo a pose e acha que está com o enxoval completo. Pode dar entrevista e massacrar os que ousem discordar.

Qualquer tema serve. Basta estar pautado, garantia de que sai no jornal. E borbota em close no vídeo. Parlamentarismo? Por exemplo. No que vier, ele atira o bombardeio de suas ideias feitas. Sempre viveu bem assim, confortável, deitado no berço esplêndido do lugar-comum. Jamais deixou de comprar feito e embrulhado. Para o presente ou para o passado. Para as ocasiões. Ah, sim: parlamentarismo. Que é que dita o interesse? Ou que é seu mestre mandou?

Postura de pigarro, lá vem chumbo grosso: não estamos preparados para o parlamentarismo. Não temos partidos nacionais de verdade. Nem uma sólida estrutura administrativa profissional. Seria o caos. Pausa. Nem a tosse é original. Vem do fundo de priscas eras.

O olhar tenta em vão pescar um brilho de inteligência. Aquela esquiva luz do raciocínio. Mas "de nihilo, nihil", dizia o Pérsio. Não o Arida, mas o romano do 1º século (ano do Senhor). Do nada, o nada. Só que aqui o nada fala. Solene, para a câmera. A câmera, coitada, é toda atenção na gravata.

Nenhum vislumbre de formulação pessoal. Nenhuma tentativa de alcançar a quota zero. Daí pra baixo, nada precisa ser dito. É a morada do óbvio ululante. Tipo o sol brilha. Ou a noite é escura. Mas o impávido entrevistado nada receia. O dom da palavra é nele um enfeite. Se não falar, corre o risco de ser estabulado. O conteúdo é outro departamento. Aqui estamos no reino do papagaio. Come o milho e leva a fama. Leva, não; ganha.

Onde está o parlamentarismo, leia-se qualquer outro item. A democracia? Ainda não estamos preparados. Ensino e saúde para todos. É cedo. Temos de nos preparar. Previdência Social: nanja! O povo não sabe votar. Ainda. Voto não enche barriga. O voto da lavadeira não pode ser igual ao do general. Quem o disse foi o general, claro. Corrupção, desnutrição, crime organizado. A solução virá a seu tempo. Calma, gente. Ainda não estamos preparados.

A BRUXA DO POETA

​1º de novembro de 1991

Eu não tenho o direito de enjoar a bordo do Brasil. Não sou passageiro de primeira viagem. Foi o que disse, quando ontem me perguntaram se não estou em pânico. Depois mudei um pouco o sentido de “enjoar”. A esta altura da vida, já vi tantas vezes esse filme que até tenho o direito ao enjoo. Enjoo no sentido daquele acesso de tédio que acometia o Afonso Arinos, em momentos de crise nacional aguda.

Mesmo investido de mandato popular, deputado ou senador, o Afonso tinha que lutar contra o sono. Mas não conseguia segurar o bocejo. Digamos que vai nisto um pouco de piada. Mas que dá um tédio medonho, ah isto dá. Você agora vê, por exemplo, esse corre-corre por causa do ouro e do dólar. Até onde o povo, o povão anônimo, tem a ver com isto? Acaba chegando lá, claro, no casebre do pobre. Ou pior: já chegou, com a perda salarial e o mais.

O pânico é um medo irracional, sem razão. Contagioso, se espalha como se alastra o fogo. Basta um boato e está aceso o rastilho de pólvora. Ninguém sabe por que, nem como é que começou. Se alguém grita calma, calma!, aí é que o susto se amplia e provoca o estouro da boiada. Ontem, foi o dia das bruxas. O Halloween teve origem na Irlanda. Na última noite do verão, no hemisfério norte, 31 de outubro, os mortos andam soltos e agarram o primeiro que bobear. É uma antiga superstição.

Séculos depois, na era da conquista do espaço, corre o boato em Nova York de que haverá um massacre. Se deu no The New York Times, e deu, aí então é que a doideira anda solta. E com ela as bruxas. Há um código de comunicação curioso em certas situações. Quando você ouve um amigo lhe dizer vou lhe falar francamente, está claro que lá vem pedrada. Agrado é que não é. Na hora do alarme, se um cara lhe diz calma, você sai correndo.

Ainda bem que aqui temos o Marcílio [Marques Moreira, ministro da Fazenda do governo Collor]. Todo mundo afobado e ele impassível garante que a turbulência é só até março do ano que vem. Podemos continuar até lá dançando ao som da orquestra do Titanic.

Mas ontem, para mim, foi o aniversário do Carlos Drummond de Andrade. Saudade do Carlos. Nasceu no dia das bruxas, em 1902. 40 anos depois escreveu o poema “A Bruxa”. Bruxa era a mariposa, que lhe fez companhia numa noite de solidão. “Certo não é vida humana, mas é vida” ― diz o poeta. Que mané pânico coisa nenhuma. Vamos ler os poetas e esperar. O Brasil não vai acabar.

VISTA CANSADA

23 de fevereiro de 1992

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa ideia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou. Fugiu enquanto pôde do desespero que o roía –e daquele tiro brutal.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê.

Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima ideia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprido o rito, pode ser que também ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de tão visto, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia a dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

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