domingo, 4 de maio de 2025

O crime no fundo das redes, Muniz Sodré ,FSP

 Em intervenção exemplar, a polícia carioca antecipou-se a um crime, prendendo três jovens maiores de idade que planejavam matar um morador de rua no domingo de Páscoa. A execução seria transmitida online a um público pagante, expectadores habituais de suas exibições de maus tratos a animais e pregações contra mulheres, negros e homossexuais. Apurou-se que é largo o espectro de adolescentes atraídos por essa iniciação à barbárie.

É coisa antiga a atração pública pelo crime. Richard Speck, conhecido como "o monstro de Chicago" por ter assassinado em uma noite de verão (1966) oito enfermeiras, recebia, na prisão, cartas de amor anônimas, algumas com dinheiro, outras com sua foto marcada de batom. As paixões inflamadas por anomalias alimentam o espetáculo do crime. Isso que Jean-Paul Sartre atribuía, na França, à "imprensa de direita da bunda e do sangue" e o levou a participar da fundação do Libération como um diário que contribuísse para o desenvolvimento real da democracia política por meio de uma "escrita-falada", próxima ao mundo do trabalho.

Aplicativos de redes sociais no celular - Arun Sankar - 22.mar.18/AFP

O alvo crítico de Sartre era o "fait-divers", isto é, os relatos jornalísticos sobre a irrupção do insólito, identificado sempre com alguma violação das normais culturais ou naturais, como o acidente, o crime, a catástrofe. Só que isso não estava necessariamente ligado à direita política, e sim à imprensa sensacionalista, que explorava o fascínio sadomasoquista dos leitores pelo mórbido ou pelo horror. O que aí conta de fato são os sentimentos mais arcaicos do indivíduo, em geral apreendidos pelas lentes da psicanálise e da psiquiatria.

Mas a recente notícia, pela imprensa francesa, da morte de uma jovem estudante em Nantes, assassinada com 57 facadas, oferece outra perspectiva. Segundo o relato, o assassino, também adolescente, num manifesto delirante, "sintetiza todas as loucuras ideológicas que gangrenam hoje as nossas sociedades". Em 13 páginas, fascinado por Hitler, ele denuncia o "neurocapitalismo", supostamente responsável pela transformação dos cérebros em instrumentos de dominação econômica e tecnológica, que promoveriam um "ecocídio globalizado". É a sua justificativa para "vingar a humanidade", assassinando uma desconhecida.

A cobertura jornalística não configura um "fait-divers". Embora confinado a um hospital psiquiátrico, esse jovem não é mero doente, protagonista isolado de um fato. Ao olhar crítico, ele seria "talvez uma prévia da assustadora racionalidade dos loucos de amanhã". Mais do que uma prévia, porém, um padrão ideológico já em curso na realidade paralela e transnacional das redes sociais, onde se multiplicam grupos organizados com motivações fascistas.

Os três jovens apreendidos pela polícia carioca (o mais velho, de 24 anos, é militar) demonstravam racionalidade operativa, comprovada no planejamento de suas lives de horror. As redes constituem uma espécie de terceira natureza (a segunda é o hábito), que conduz consciências vulneráveis por veredas sinistras. Não se trata de moldar cabeças, velha hipótese sobre a influência da mídia, mas de caminhar na escuridão moral aberta pelo espaço virtual. Se o motor do percurso é o prazer transgressivo inerente à adolescência, o ponto de chegada é o crime real no fundo das redes.

Quem influenciou quem? Ruy Castro FSP

 Elis Regina, que teria feito 80 anos em março, parece estar de volta —pelo menos nos termos que o Brasil permite isso a uma pessoa que já se foi há tanto tempo. O magnífico filme "Elis & Tom", de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, de 2022, já foi um renascimento. "Elis", sua biografia por Julio Maria, saiu de novo, agora pela Companhia das Letras. E, incrível, Elis está presente até no rádio de táxis que tenho tomado. Sua voz volta para fazer companhia às de Leila Pinheiro, Marisa Monte e Maria Rita, suas mais aplicadas herdeiras. Mas, se Elis teve seguidoras, ela própria teria sido herdeira de quem? De Angela Maria, claro, depois temperada com Nora Ney, a resultar numa cantora que sabia cantar e dizer.

A imagem mostra três capas de discos de vinil sobre uma superfície escura. A capa superior é de 'Bobby Troup!', com uma foto em preto e branco de um homem sorridente. A capa do meio é de 'The Greatness of Joe Mooney', apresentando um close do rosto de um homem com cabelo grisalho. A capa inferior é de 'She Dances Overhead' de Matt Dennis, com uma imagem colorida de pernas femininas em uma saia azul. As capas contêm títulos e informações sobre as faixas dos discos.
LPs clássicos de Bobby Troup e Joe Mooney e CD de Matt Dennis, cantores americanos - Heloisa Seixas

Influências são sempre discutíveis e podem ser surpreendentes. Ella Fitzgerald, para muitos, foi a maior cantora negra. Por quem ela se dizia influenciada? Pela branca, e também grande, Connie Boswell. E qual era a cantora que, segundo ela própria, tinha Ella como modelo? Doris Day. Bing Crosby saiu de quem? Do tenor irlandês John McCormack e de Louis Armstrong. E quem saiu de Bing? Frank Sinatra, Billy Eckstine, Mel Tormé, Dean Martin e dezenas de outros, inclusive o nosso Dick Farney —e, num palpite ousado, mas facilmente defensável, Orlando Silva.

Orlando Silva? Sim, de quem saíram Cyro Monteiro, Lucio Alves e, confessadamente, João Gilberto, todos no início da carreira. E enganam-se os que dão João Gilberto como influenciado por Chet Baker. João Gilberto e Chet Baker é que foram influenciados por Joe Mooney, Matt Dennis, Bobby Troup e uma quantidade de americanos que já cantavam baixinho e quase sem vibrato em fins dos anos 1940. Os quais, todos, podem ter saído do jovem Nat King Cole.

Raul Seixas queria ser Elvis Presley. Há quem ouça ecos de Jerry Adriani em Renato Russo. E não ria, mas sempre achei Roberto Carlos um Waldik Soriano suavizado por Tito Madi.

Bem, eu disse que essa história de influência de um cantor sobre outro era discutível.

O cérebro ideológico, Helio Schwartsman, FSP

 Uma boa pedida para quem quer entender melhor os tempos estranhos em que vivemos é "The Ideological Brain", da neurocientista política Leor Zmigrod.

Gostamos de imaginar que aqueles que abraçam ideologias com as quais não concordamos são pessoas rasas, que nem se dão ao trabalho de pensar direito sobre as questões em relação às quais se posicionam. Zmigrod mostra que não é bem assim.

A imagem apresenta duas figuras humanas de perfis opostos, uma à esquerda e outra à direita. A figura à esquerda tem a pele escura e usa uma camiseta vermelha, enquanto a figura à direita tem a pele clara e usa uma camiseta azul. Ambas as figuras têm seus cérebros expostos, com áreas coloridas em vermelho e azul, representando diferentes partes do cérebro. O fundo da imagem é de uma cor azul clara.
Annette Schwartsman

Na mais simples de suas muitas definições, a ideologia é um tipo de narrativa que conta uma história atraente sobre o mundo. Mas, diferentemente das histórias produzidas pela cultura, as da ideologia têm caráter absolutista e cobram adesão dogmática. Não toleram contestação e vêm com prescrições. Quem se torna presa de uma ideologia passa por transformações cerebrais profundas, que deixam marcas físicas. Em casos extremos, a ideologia sequestra o próprio pensamento. A pessoa se torna menos singular, menos curiosa, menos livre.

"The Ideological..." não é um livro difícil, mas não simplifica. As inafastáveis descrições neuroanatômicas estão presentes, mas restritas a poucas passagens. Idem para os vários experimentos (da própria autora e de outros) que tentam mostrar quais são os tipos psicológicos mais vulneráveis à ideologia. A rigidez cognitiva é provavelmente o melhor preditor de suscetibilidade.

Histórica e filosoficamente informada (graduou-se em Cambridge), Zmigrod traça a genealogia do termo ideologia, cunhado por Louis Claude de Tracy no século 18 para designar o que deveria ser a ciência que estuda como temos ideias.

Uma desavença entre De Tracy e Napoleão fez com que, após campanha do corso, a palavra fosse ganhando contornos pejorativos até tornar-se quase que um palavrão com Karl Marx.

Algo que chama a atenção é a transparência com que Zmigrod apresenta as limitações e os pontos fracos de suas pesquisas. Se é o antidogmatismo que caracteriza o pensamento não ideológico, Zmigrod nos oferece uma prova prática de como agir.

PS —dou duas semanas de férias ao leitor.