domingo, 13 de abril de 2025

Juca Kfouri - No Brasil, ainda não se achou como comprar direitos sem virar sócio do vendedor, FSP

 Não é de hoje, sempre foi deste jeito: a prática que envolve os contratos de transmissão de campeonatos de futebol no país é invariavelmente contaminada pela exigência não escrita de que o vendedor deve ser preservado de críticas ou revelações comprometedoras feitas pelo comprador.

Como se uma operação de compra e venda se transformasse em sociedade entre as partes.

Durante décadas funcionaram o monopólio da Globo e as relações promíscuas da empresa com a CBF e as federações estaduais.

A imagem mostra o troféu do Campeonato Brasileiro em primeiro plano, posicionado sobre a grama. Ao fundo, é visível o edifício da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), com várias bandeiras hasteadas e o logotipo da CBF na parede do prédio.
A sede da CBF, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro - Lucas Figueiredo/CBF

Impossível deixar de usar a primeira pessoa como testemunha do método que também a Editora Abril passou a utilizar quando começou sua operação na TV fechada —inicialmente com a TVA.

Por 25 anos a revista Placar, de 1970 a 1995, notabilizou-se por criticar o atraso e a corrupção na gestão do futebol brasileiro com mais que absoluta liberdade —com elogios da direção da empresa.

Até o dia em que Ricardo Teixeira, então presidente da CBF, disse a Roberto Civita, dono da Abril, segundo o próprio contou ao pedir compreensão e o fim das críticas: "Roberto Marinho manda na Globo, eu mando na CBF, e você não manda na Abril. Não posso negociar com você enquanto a Placar seguir batendo em mim a cada edição".

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Diante da inaceitável proposta de fim das críticas, seguiu-se nota da Abril para explicar que, por divergências editoriais, como fiz questão de impor, estava encerrada minha participação de um quarto de século na empresa.

Então, vim parar nesta Folha. Lá se vão 30 anos.

Não muito tempo depois soube que Civita disse em reunião com seus executivos: "O Kfouri tem razão. Esse Ricardo Teixeira não cumpre em pé o que promete sentado".

A Abril nunca conseguiu quebrar o monopólio da Globo, que tinha como negociador com a CBF um compadre de Teixeira, Marcelo Campos Pinto, depois denunciado no Fifagate.

É assim que funciona.

Triste constatar quando os interesses comerciais se sobrepõem ao jornalismo, quando a tênue fronteira que separa a Igreja do Estado é desrespeitada e o interesse da cidadania é passado para trás.

Daí, também, a tendência cada vez maior de tratar o futebol apenas como entretenimento e deixar de lado suas mazelas, com a justificativa de que ninguém está interessado se o cartola rouba ou não, porque torcedores querem saber de gols, vitórias, contratações etc.

As coisas mudaram no campo das transmissões, e o surgimento da internet, do streaming, democratizou os meios de transmissão e aumentou a concorrência por seus direitos, algo saudável.

O modo de negociar, no entanto, pouco se alterou.

Cinegrafista trabalha em transmissão em São Paulo - Eduardo Anizelli - 2.mar.16/Folhapress

Direitos internacionais dão menos dores de cabeça, seja porque tratados com intermediários, seja porque quem os vende nem sabe como o produto é tratado pelos veículos compradores.

Na paróquia é diferente.

Jamais cartola nenhum admitirá que pediu cabeça de jornalista ou que se queixou para a cúpula da empresa.

Mas é prática recorrente.

No conflito de interesses que se estabelece, o vendedor argumenta ser absurdo comprar um evento e criticá-lo, o comprador pondera que precisa proteger seus interesses, e o jornalista fica imprensado nesta luta do rochedo com o mar —ou dá ou desce.

Decisão que depende das circunstâncias de cada um e que dispensa heróis com o pescoço alheio.


quinta-feira, 10 de abril de 2025

Do Código napoleônico ao macarrônico, Conrado Hübner Mendes, FSP

 O Código Civil, mais que a Constituição ou o mar, é quem te navega como proprietário ou posseiro, filho, filha ou herdeiro, pai ou mãe, marido ou esposa, contratante ou contratado, empresário. Vivo, morto ou antes de nascer. Protege ou desprotege teu patrimônio, tua família, tua liberdade.

A ideia de código como lei que disciplina de modo sistemático, completo e perene a vida privada surgiu no Código Civil francês de 1804, maior monumento legislativo da modernidade. Ainda vigente, ficou conhecido como Código Napoleônico, símbolo de ruptura com o antigo regime. Uma espécie de big bang jurídico, influenciou todo o mundo ocidental.

Nosso primeiro Código Civil data de 1916, com 1.807 artigos. Sua paternidade intelectual pertence a Clóvis Beviláqcua. Teixeira de Freitas, o maior jurista do Império, já havia rabiscado código com mais de 5.000 artigos. Não vingou aqui, mas influenciou toda a América Latina.

A imagem mostra uma mesa com vários livros empilhados, destacando três cópias do livro intitulado 'A Reforma do Código Civil'. Ao fundo, é visível a parede do Senado Federal. Uma pessoa, parcialmente visível, passa ao lado da mesa, enquanto outra está escrevendo em um bloco de notas.
Lançamento do livro "A Reforma do Código Civil", de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), no Senado - Andressa Anholete - 9.abr.2025/Agência Senado

Nosso segundo Código Civil é de 2002. Ficou quase 30 anos em debate, tentou superar os anacronismos e insuficiências do anterior e permanece vigente. Miguel Reale conduziu essa maratona de 2.046 artigos.

Podemos discutir se na vida privada contemporânea, transformada pela tecnologia, diversificação econômica e erosão de fronteiras, uma lei pretensiosa assim dá conta da missão. Desde 2002, o Código Civil sofreu reformas pontuais. Boas ou ruins, chacoalharam a prática jurídica, exigiram novas interpretações, geraram incerteza. Passado algum tempo, mudanças vão se estabilizando.

Em 2023, Rodrigo Pacheco, vislumbrando o fim de seu mandato na presidência do Senado, teve ideia de dar ao país um novo Código Civil. Convidou jurista para presidir comissão e elaborar o anteprojeto. Entregue em abril de 2024, sete meses depois, sua tramitação legislativa está para começar.

Fanfarrônico no método, macarrônico no conteúdo, o que se viu gera preocupação. E passa abaixo do radar do debate público.

O projeto de lei (PL 4/2025) altera mais de 1.000 artigos do código vigente e acrescenta 300. Muda mais o código de 2002 do que este alterou o de 1916. Tem sido chamado, no site do Senado, de "Novo Código". Seus autores, curiosamente, chamam de "reforma".

Essa divergência vocabular não é trivial. Dela depende o ritmo a se adotar. Se entendido como "código", a democracia terá a chance de debater, amadurecer, criticar, fiscalizar e decidir se quer seguir em frente. Se for "reforma", o ritmo sumário não nos dará nem chance de conversar.

Nesse pouco admirável mundo do novo projeto de Código Civil, vemos mais um sintoma agudo da degradação da profissão jurídica. Vemos a ambição de escrever lei para chamar de sua e de mercantilizar a autoria em pareceres jurídicos e manuais didáticos, também conhecida como "capitalização precoce". O projeto nem tramitou, mas já vemos livros publicados e cursos vendidos.

O ápice do mercado da autoria legislativa está na produção de um Código Civil. Não é só a vaidade da autoria, mas a lucratividade da autoria. A confraria tem muito a ganhar quando coloca "membro da comissão de juristas do Código Civil" no seu cartão de visita.

"Difícil não passar. Até porque a maioria do Congresso, eles são advogados, hehehe". Assim o presidente da comissão respondeu a pergunta sobre privilégio a advogados criado no anteprojeto.

A criminalização da pobreza e a responsabilização de mães em situação de vulnerabilidade, FSP

 Luiza Oliver

É advogada, mestre em direito penal e sócia do escritório Toron Advogados

Ingrid Ortega

É advogada, coordenadora do Projeto Alê Szafor e associada do escritório Toron Advogados

Recentemente, o Projeto Alê Szafir, iniciativa pro bono voltada ao atendimento da população vulnerável, recebeu mais um dos tantos descasos da justiça criminal: a condenação a 35 anos de prisão de uma mulher preta, pobre, analfabeta e socialmente marginalizada, acusada de um crime que não cometeu e que, diante de sua realidade, sequer teria como impedir.

O caso escancara prática preocupante no Judiciário brasileiro: a responsabilização desarrazoada de mães em situação de extrema vulnerabilidade por omissão imprópria, ou seja, por não terem evitado crimes praticados por terceiros contra seus filhos.

Exige-se dessas mulheres uma capacidade de proteção que elas simplesmente não possuem —seja por desconhecimento dos fatos, seja pela impossibilidade concreta de agir no contexto em que vivem.

A imagem apresenta duas mulheres em um retrato em preto e branco. À esquerda, uma mulher sorri, com cabelo liso e ombros descobertos, usando um suéter claro. À direita, a outra mulher tem cabelo liso e usa óculos, vestindo uma blusa com estampas florais. Ambas estão em poses que transmitem confiança.
Luiza Oliver é advogada, mestre em direito penal e sócia do escritório Toron Advogados; Ingrid Ortega é advogada, coordenadora do Projeto Alê Szafir e associada do escritório Toron Advogados - Divulgação

Por razões de sigilo processual, usaremos aqui nomes fictícios.

Maria, mãe de sete filhos e avó de onze, vivia realidade comum a milhões de brasileiros: sem acesso a saneamento básico, sem instrução, sem renda. No minúsculo barraco onde morava, na mais pobre das favelas paulistanas, não havia espaço para todos dormirem, tampouco comida suficiente para alimentar todas as bocas. Um retrato da miséria estrutural que assola o país.

Como tantas outras nessa situação, Maria contava com uma rede informal de apoio —familiares, amigos e vizinhos que contribuíam como podiam, seja com alimentos, doações ou ajuda no cuidado das crianças. João era um desses. Em sua casa de três cômodos, oferecia abrigo e comida para as crianças quando necessário.

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O que Maria não sabia —porque ninguém lhe disse, porque sua realidade a impedia de perceber, porque a miséria e a ignorância a colocavam numa posição de extrema fragilidade— era que suas filhas estavam sendo abusadas por João. Segundo as vítimas, elas nunca contaram à mãe porque, por anos, acreditaram que a violência a que eram submetidas era normal.

Seis anos depois dos fatos e sem encontrar o verdadeiro agressor, o Ministério Público denunciou Maria por estupro de vulnerável, sob a alegação de que, como mãe, "tinha pleno conhecimento das agressões" e, mesmo podendo agir, "optou por se omitir".

A condenação veio mesmo diante de provas concretas de que Maria desconhecia o que acontecia na casa de João. Mas, segundo a juíza, era "claro que sabia". Afinal, era mãe. E ser mãe, para o sistema de justiça, significa estar sempre ciente, sempre vigilante, sempre responsável.

E o pai? Era ausente. Morava em outra cidade, não via as filhas. Mas ninguém sequer cogitou que tivesse cometido qualquer crime.

O caso, por mais absurdo que pareça, não é isolado. O Judiciário tem imposto a mães pobres e vulneráveis um dever de vigilância e proteção que elas, na sua mais absoluta precariedade, não têm meios de exercer. Espera-se que saibam, que desconfiem, que percebam e que ajam para impedir o crime —ainda que suas próprias condições de vida as tornem incapazes de identificar ou reagir.

São milhares de Marias espalhadas pelo Brasil. Algumas não percebem os abusos; outras até os identificam, mas não têm meios de agir. São mulheres que vivem sob violência doméstica, dependência financeira, controle psicológico e ameaça. São mulheres esquecidas pelo Estado, mas cobradas por ele com rigor e excelência.

O dever de agir só pode ser exigido de quem tem condições reais de cumpri-lo. Preocupa ver que o sistema judicial transforma em "omissão penalmente relevante" o que, na verdade, é vulnerabilidade extrema e desamparo social. E assim, o Estado lava as mãos.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Luiza Oliver e Ingrid Ortega foi "Geni e o Zepelim", de Chico Buarque