quinta-feira, 10 de abril de 2025

Do Código napoleônico ao macarrônico, Conrado Hübner Mendes, FSP

 O Código Civil, mais que a Constituição ou o mar, é quem te navega como proprietário ou posseiro, filho, filha ou herdeiro, pai ou mãe, marido ou esposa, contratante ou contratado, empresário. Vivo, morto ou antes de nascer. Protege ou desprotege teu patrimônio, tua família, tua liberdade.

A ideia de código como lei que disciplina de modo sistemático, completo e perene a vida privada surgiu no Código Civil francês de 1804, maior monumento legislativo da modernidade. Ainda vigente, ficou conhecido como Código Napoleônico, símbolo de ruptura com o antigo regime. Uma espécie de big bang jurídico, influenciou todo o mundo ocidental.

Nosso primeiro Código Civil data de 1916, com 1.807 artigos. Sua paternidade intelectual pertence a Clóvis Beviláqcua. Teixeira de Freitas, o maior jurista do Império, já havia rabiscado código com mais de 5.000 artigos. Não vingou aqui, mas influenciou toda a América Latina.

A imagem mostra uma mesa com vários livros empilhados, destacando três cópias do livro intitulado 'A Reforma do Código Civil'. Ao fundo, é visível a parede do Senado Federal. Uma pessoa, parcialmente visível, passa ao lado da mesa, enquanto outra está escrevendo em um bloco de notas.
Lançamento do livro "A Reforma do Código Civil", de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), no Senado - Andressa Anholete - 9.abr.2025/Agência Senado

Nosso segundo Código Civil é de 2002. Ficou quase 30 anos em debate, tentou superar os anacronismos e insuficiências do anterior e permanece vigente. Miguel Reale conduziu essa maratona de 2.046 artigos.

Podemos discutir se na vida privada contemporânea, transformada pela tecnologia, diversificação econômica e erosão de fronteiras, uma lei pretensiosa assim dá conta da missão. Desde 2002, o Código Civil sofreu reformas pontuais. Boas ou ruins, chacoalharam a prática jurídica, exigiram novas interpretações, geraram incerteza. Passado algum tempo, mudanças vão se estabilizando.

Em 2023, Rodrigo Pacheco, vislumbrando o fim de seu mandato na presidência do Senado, teve ideia de dar ao país um novo Código Civil. Convidou jurista para presidir comissão e elaborar o anteprojeto. Entregue em abril de 2024, sete meses depois, sua tramitação legislativa está para começar.

Fanfarrônico no método, macarrônico no conteúdo, o que se viu gera preocupação. E passa abaixo do radar do debate público.

O projeto de lei (PL 4/2025) altera mais de 1.000 artigos do código vigente e acrescenta 300. Muda mais o código de 2002 do que este alterou o de 1916. Tem sido chamado, no site do Senado, de "Novo Código". Seus autores, curiosamente, chamam de "reforma".

Essa divergência vocabular não é trivial. Dela depende o ritmo a se adotar. Se entendido como "código", a democracia terá a chance de debater, amadurecer, criticar, fiscalizar e decidir se quer seguir em frente. Se for "reforma", o ritmo sumário não nos dará nem chance de conversar.

Nesse pouco admirável mundo do novo projeto de Código Civil, vemos mais um sintoma agudo da degradação da profissão jurídica. Vemos a ambição de escrever lei para chamar de sua e de mercantilizar a autoria em pareceres jurídicos e manuais didáticos, também conhecida como "capitalização precoce". O projeto nem tramitou, mas já vemos livros publicados e cursos vendidos.

O ápice do mercado da autoria legislativa está na produção de um Código Civil. Não é só a vaidade da autoria, mas a lucratividade da autoria. A confraria tem muito a ganhar quando coloca "membro da comissão de juristas do Código Civil" no seu cartão de visita.

"Difícil não passar. Até porque a maioria do Congresso, eles são advogados, hehehe". Assim o presidente da comissão respondeu a pergunta sobre privilégio a advogados criado no anteprojeto.

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