segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Europa nunca levou pressão econômica contra Rússia a sério, diz autora de 'Autocracia S.A.', FSP

 Walter Porto

Frankfurt (Alemanha)

Guerra da Ucrânia só vai terminar quando houver uma mudança de mentalidade na Rússia; os países ocidentais nunca pensaram em um plano concreto para a vitória de Kiev; a Europa jamais levou a sério a pressão econômica e política contra Vladimir Putin.

Essas foram algumas das argumentações de um encontro momentoso entre a jornalista Anne Applebaum, hoje uma das intelectuais mais influentes dos Estados Unidos e autora do novo best-seller "Autocracia S.A.", e Dmitro Kuleba, que foi ministro das Relações Exteriores da Ucrânia de 2020 até o mês passado, quando deixou o cargo.

Uma mulher sorridente está em pé em uma calçada, com um fundo de uma rua urbana. Ela usa uma blusa preta e um casaco escuro. Ao fundo, há edifícios e plantas decorativas. A rua é pavimentada e há carros estacionados.
A escritora Anne Applebaum em 2021 - Divulgação

Os dois se encontraram na Feira de Frankfurt nesta sexta-feira (18) para uma conversa sobre como a guerra terminará. Ninguém estava muito otimista.

"A guerra termina quando a Rússia decidir que não vale mais a pena lutar, depois de derrotas simbólicas e fracassos econômicos suficientes", disse a vencedora do Pulitzer, que recebeu o prêmio da paz desta edição do evento alemão. "Isso cedo ou tarde vai acontecer, e então o país estará pronto para um acordo diplomático."

Applebaum apontou o que enxergava como dois erros crassos nas ações dos países ocidentais diante da guerra. Primeiro, adotar uma postura de ajudar a Ucrânia "por quanto tempo for necessário", ressaltando a resiliência em vez da arquitetura de um plano concreto para derrotar rápido os russos.

Em segundo lugar, não pressionaram Putin o suficiente pela economia, adotando comportamentos que brasileiros chamariam de "para inglês ver". "Vocês sabiam que a exportação da Europa para o Cazaquistão triplicou desde 2022? Isso não quer dizer que as relações com aquele país de repente ficaram pujantes. Esse comércio acaba na Rússia."

Kuleba ressaltou um discurso já frequente nos oficiais ucranianos, de que Putin não ficará satisfeito caso consiga conquistar a Ucrânia e avançará para outros países europeus. Applebaum apontou que é difícil para a Europa ver a Rússia como uma ameaça existencial. "São pessoas que, por 30 anos, foram convencidas de que a Guerra Fria tinha ficado para trás."

A jornalista, que se especializou em analisar o avanço do autoritarismo em livros como "O Crepúsculo da Democracia", também se mostrou cética em relação a organismos internacionais. "O Conselho de Segurança da ONU, hoje, não funciona mais, com China e Rússia empenhadas em projetos contra a democracia ocidental."

Ela aproveitou para adiantar alguns dos argumentos de "Autocracia S.A.", que sai no Brasil no próximo mês pela Record. Os projetos antidemocráticos têm ligação econômica umbilical entre si, segundo ela, o que leva países como a Coreia do Norte a apoiar a Rússia contra a Ucrânia mesmo jamais tendo qualquer relação bilateral que a posicionasse contra Kiev no tabuleiro global.

A aproximação financeira vem como consequência do pendor para a autocracia, com ditaduras se reforçando contra países democráticos, segundo a argumentação. "A China quer a Rússia de Putin viva para enfraquecer o Ocidente", afirmou Kuleba. "Mas também o quer fraco, para que ele se submeta a seus interesses. Por isso a continuação da guerra a favorece."

Segundo o ex-ministro ucraniano, que tem viajado o mundo agora como um propagandista informal de Kiev, países como a Alemanha, anfitriã do evento, têm uma longa história de relações com os russos, tanto que estavam "muito felizes de dividir a Europa em Oriente e Ocidente". "O problema é que o Ocidente nunca acreditou na Ucrânia, nem antes nem depois da guerra."

A mediadora do evento, a jornalista alemã Cathrin Kahlweit, perguntou se ele estaria desapontado. Ele levantou os ombros e disse: "Bom, é o Ocidente que temos".

Hélio Schwartsman - Autocracia S.A., FSP

 Não é que exista uma sala do mal, onde tiranos inspirados em vilões de filmes de James Bond se reúnem para conspirar contra o mundo livre, mas líderes autocratas estão se organizando e colaborando uns com os outros num modelo próximo do de aglomerados empresariais. Essa é a tese de "Autocracia S.A.", de Anne Applebaum.

O que une os autocratas contemporâneos não é um projeto ideológico. Não haveria como juntar num plano coerente de ideias o nacionalismo russo, o comunismo de mercado chinês, a teocracia iraniana e o bolivarianismo venezuelano. Mas todos eles (e vários outros) têm interesses pragmáticos comuns em encontrar meios de evitar sanções e reprimendas do Ocidente, aprimorar sistemas de vigilância e repressão interna e enfraquecer regimes que possam fazer-lhes oposição.

A imagem ilustra quatro líderes políticos (de Irã, China, Venezuela e Rússia) sentados ao redor de uma mesa redonda. À esquerda, um homem com barba e turbante preto. Ao lado dele, um homem de terno escuro e gravata vermelha. No centro, um homem com um terno azul e uma expressão de determinação, levantando o punho. À direita, um homem com cabelo claro e terno escuro. Ao fundo, um gráfico com linhas coloridas e as palavras 'fake news', 'vigilância' e 'controle'.
Ilustração de  Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman, esta que será publicada também na versão impressa da Folha neste domingo (3 de novembro). - Annette Schwartsman

Segundo Applebaum, essa autocracia S.A. já é uma realidade. E, em grande parte, por culpa do Ocidente, que errou ao menos duas vezes. Em primeiro lugar, acreditou, ingenuamente, que bastaria expor países como Rússia e China à economia de mercado para que se tornassem democracias.

Em segundo, não criou um ambiente de negócios e que impeça lavagem de dinheiro e a evasão de sanções, privando-se das armas que teria para enfrentar tiranos e cleptocratas. Em tese seria possível fazê-lo, mas não são poucos os atores ocidentais que ganham com a prática. A autora, que fez extensa pesquisa, mostra vários desses esquemas, dando nomes aos bois.

De modo análogo, ela faz críticas pesadas à tibieza do Ocidente na regulação de fake news e da inteligência artificial. É por meio delas que países como a Rússia interferem em eleições e estimulam o crescimento de grupos hostis à democracia.

Chama também a atenção a evolução do pensamento de Applebaum. Ela era uma autora conservadora que mantinha vínculos com políticos de direita. Continua conservadora, mas afastou-se de várias figuras da direita, que deixaram de se importar com a deterioração de democracias. Em alguns momentos, sua pauta em favor de maior regulação se aproxima da de grupos de esquerda.


Retrocesso na reforma da Previdência é insustentável, editorial FSP

 

Aprovada em 2019 após debates que se arrastaram por décadas, a reforma da Previdência Social resultou de um amplo entendimento político para alterar a Constituição e tornar mais sustentável o sistema nacional de aposentadorias. Agora, cinco anos depois, os frutos de todo esse trabalho estão sob ameaça corporativista no Supremo Tribunal Federal.

Está por ser finalizado o julgamento conjunto de 13 ações contra dispositivos da reforma, ajuizadas sobretudo por entidades da elite dos servidores públicos, com perda potencial de astronômicos R$ 497,9 bilhões em dez anos para as já combalidas finanças do Estado brasileiro.

A análise havia sido interrompida em junho por pedido de vista do ministro Gilmar Mendes e será retomada pelo plenário. Já votaram 10 dos 11 magistrados, e há maioria para a derrubada de três pontos fundamentais da reforma —os votos ainda podem ser mudados até o fim do julgamento.

Um dos casos é a previsão de contribuição extraordinária de servidores ativos e inativos, que pode incidir sobre vencimentos acima de um salário mínimo.

Outro é a diferenciação do cálculo do valor das aposentadorias de mulheres entre os regimes público e privado. A reforma previu critério menos vantajoso no caso das servidoras, mas a maioria dos ministros do STF votou para que as regras sejam as mesmas —sem considerar que o sistema público, analisado em sua integralidade, é mais generoso.

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O principal risco diz respeito à progressividade da alíquota de contribuição do funcionalismo federal. Pela reforma, a cobrança varia de 7,5%, para vencimentos de um salário mínimo, a 22%, para remunerações acima de R$ 52 mil mensais. Nesse tema, há empate de 5 a 5, estando pendente o voto de Gilmar Mendes.

Até 2019, a alíquota era de 11%, patamar insuficiente para custear o sistema público, que é altamente deficitário e ainda oferece condições desiguais ante os trabalhadores do setor privado. A progressividade da cobrança também passou a valer para o regime geral, com taxas diferentes.

O impacto da reversão desse dispositivo nas contas da União pode chegar a R$ 300 bilhões em dez anos, um retrocesso grave que eliminaria quase 40% da economia obtida com a reforma. Espera-se que o STF tenha em mente que a progressividade é um princípio correto, que se assenta na busca por maior equidade social. Não há controvérsia moral ou jurídica, por exemplo, em torno de sua aplicação na cobrança do Imposto de Renda.

É crucial, sobretudo, que os magistrados —eles próprios servidores de elite— mantenham o interesse público acima de afinidades corporativistas.

Mesmo após a reforma, o sistema de aposentadorias continua muito deficitário. Com o envelhecimento populacional, serão necessários ajustes contínuos, a incluir também os militares, e retrocessos só elevarão a necessidade de sacrifícios no futuro.

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