quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Marcos Augusto Gonçalves - Quando Cid Moreira prendia o Brasil em cadeia nacional, FSP

 Marcos Augusto Gonçalves

A expressão "cadeia nacional" para designar a formação de uma rede de transmissão de TV com alcance em todo o país já foi explorada, em sua ambiguidade e de maneira irônica e crítica, para ressaltar os laços entre o Jornal Nacional e a ditadura militar.

O telejornal da Globo colocava a classe média, mas não apenas, numa espécie de prisão desinformativa ao selecionar o que deveria ou não ser dito aos espectadores, repetir versões oficialistas e coordenar o pensamento único sobre o que se vivia àquela época.

Nessa cadeia ideológica televisiva, os prisioneiros recebiam notícias ao vivo em suas casas e ficavam sabendo que o Brasil ia para frente, que estavam sendo lançadas grandes obras e que em breve poderíamos nos transformar numa verdadeira potência internacional.

O apresentador Cid Moreira no Jornal Nacional, da Globo, em 1972 - Acervo Cid Moreira/Acervo Cid Moreira

Cid Moreira foi a face insuperável desse Brasil na TV, que chegou ao ápice da repressão e do júbilo nos primeiros anos da década de 1970, durante o chamado "milagre brasileiro", período de forte crescimento econômico.

A economia brasileira, numa época de sindicatos e partidos populares silenciados, crescia a taxas chinesas. Experimentava-se um boom de empreendedorismo industrial e financeiro juntamente com o impulso de iniciativas estatais.

A conquista da Copa em 1970 ajudou a chancelar a difusão do otimismo patriótico desenvolvimentista. Uma nova tecnoburocracia florescia e multiplicavam-se os executivos de terno justo e a famosa maleta 007.

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Inicialmente em preto e branco, Cid Moreira, a partir de 1972, passou a ser visto ao vivo e em cores nos quatro cantos do país —como a programação da Globo. Era mais uma prova do progresso e da modernização. Nos comunicávamos "via satélite", estávamos todos sincronizados e quem não estivesse satisfeito poderia seguir o lema "ame-o ou deixe-o".

Já para o meio cultural e os setores democráticos, o termo que resumia o sentimento generalizado de derrota para a ditadura era "sufoco". Tremendo sufoco, reclamava-se à boca pequena. Sufoco nas universidades, sufoco nas artes, sufoco no trabalho.

A cooptação de artistas e intelectuais de esquerda pelo sistema, como se dizia à época ("fulano foi cooptado") mostrava-se inevitável. Prosperava, na própria TV, uma produção cultural crescentemente voltada para o mercado. Era o que os críticos chamavam de cultura alienada, uma engrenagem que se movia para impedir a tomada de consciência das massas. A ideia da ignorância como projeto de poder, como sugeriu Darcy Ribeiro.

Cid Moreira foi o rosto mais influente e conhecido desse período sombrio do jornalismo, acossado pela censura mas também impulsionado pelas simpatias da mídia —e não apenas da Globo— pela ditadura que teria vindo em 1964 para nos salvar do comunismo.

Sua carreira, no entanto, foi longa. Deixou o JN em 1996, quando o país mudava e consolidava-se o processo de democratização. A presença no telejornal por tanto tempo e a atuação em outros programas da Globo —como a passagem pelo Fantástico— transcendem a visão mais restrita do rosto dos tempos da ditadura. Cid Moreira foi, afinal, uma grande estrela, um locutor virtuoso e um personagem que exerceu fascínio e reuniu fãs incontáveis —e tornou-se cult, além de querido.

Joanna Moura - Talaricagem em debate, FSP

 Nesta segunda-feira (30), ao sair do debate promovido pela Folha e UOL, o candidato Pablo Marçal, que concorre à Prefeitura de São Paulo, chamou sua adversária Tabata Amaral de "talarica", termo que se refere a uma mulher que rouba o marido ou namorado de outra e que eu jamais imaginaria ouvir dentro do contexto de uma campanha eleitoral.

"Você destruiu o sonho de uma mulher que tinha sete anos de namoro" disse o coach, se referindo ao fim do relacionamento de João Campos, atual prefeito do Recife, com sua ex-noiva. "Eu só tenho a dizer que você é uma talarica, Tabata. Você tinha que respeitar as mulheres."

A aparente defesa de Marçal ao público feminino deve ser encarada como nada mais que uma defesa de si mesmo. Segundo as últimas pesquisas, Pablo desponta como o mais rejeitado dos candidatos, especialmente entre as mulheres, grupo em que a taxa de rejeição do candidato chega a 57%. A quem anda acompanhando o reality show de quinta categoria em que Marçal transformou a corrida pela prefeitura da maior cidade da América Latina, o número não há de provocar qualquer surpresa.

Pablo Marçal e Tabata Amaral durante o debate Folha/UOL, na segunda (30) - Danilo Verpa - 30.set.2024/Folhapress

Ao longo de sua campanha, Pablo tem se esforçado para ser o mais viril dos candidatos. A tentativa regada a testosterona fica evidente na agressividade frente a seus oponentes homens e no tom condescendente com que se dirige às concorrentes mulheres.

Mas observar os ataques que Pablo direciona aos outros candidatos versus a estratégia que utiliza para enfraquecer o pleito de Tabata, especificamente, revelam mais do que sua própria misoginia, mas a maneira como a barra que estabelecemos para a moral das mulheres é bem diferente daquela com que medimos a moral masculina.

No próprio debate que antecedeu a menção à talaricagem, Marçal atacou seus adversários homens com acusações que incluíam envolvimento com o crime organizado, uso de drogas, violência física contra a mulher, depredação de patrimônio, superfaturamento e desvio de dinheiro público.

À Tabata, no entanto, o candidato inicialmente teceu elogios: disse que era a mais inteligente, aquela com as melhores propostas e com o melhor plano de governo. Em dado momento, sugeriu que poderia trazê-la para ser secretária da educação em seu governo. Se as falas refletem de forma legítima o que pensa o candidato é difícil afirmar. Pessoalmente, me parece mais uma tentativa de trazer o público feminino para o seu lado.

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Porém, diante das negativas da oponente de cair em sua lábia, Pablo partiu para o ataque. Na ausência de grandes escândalos políticos para atribuir à adversária, Marçal resolveu desferir um golpe no lugar onde de fato as mulheres são julgadas: na dicotomia entre ser sagrada ou profana.

Na análise de Pablo, Tabata tenta "vender ao público uma imagem de pureza", talvez por ele mesmo acreditar que essa seja a maior virtude que uma mulher pode oferecer em qualquer arena que adentre.

Ao chamar Tabata de "talarica", o coach lhe implica o contrário, apelando para a moral tradicional feminina e à ideia de que não há roubo mais vil que uma mulher possa cometer do que aquele em que ela se utiliza de seu poder de sedução para roubar um pobre homem indefeso dos braços de outra.

Não entrarei no mérito da veracidade da referida talaricagem, mas posso afirmar com muita certeza que o atual namorado de Tabata não está sofrendo com o mesmo tipo de acusação em sua campanha para um segundo mandato como prefeito do Recife.

Ao final de sua fala, olhando para a câmera, Pablo recomenda que Tabata respeite as mulheres. Pois eu me sinto na obrigação de dizer o mesmo a ele: Nos respeite, candidato Marçal. Respeite nossas escolhas e não insulte nossa inteligência.