terça-feira, 13 de agosto de 2024

Decisão do TCU leva governo Lula a liberar R$ 1,35 bi extra ao Judiciário, FSP

 

Brasília

Uma decisão do TCU (Tribunal de Contas da União) levou o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a abrir um crédito extraordinário de R$ 1,35 bilhão para o Poder Judiciário fora dos limites do arcabouço fiscal e da meta de resultado primário fixada para este ano.

A corte de contas determinou ao Executivo restituir diferenças retroativas de limites concedidos a menor no teto de gastos entre 2017 e 2019. O dinheiro foi liberado no início de julho, e a maior parte (R$ 1,1 bilhão) foi direcionada a despesas com pessoal.

A decisão contrariou o governo e gerou críticas no Legislativo. Em nota técnica, consultores da Câmara dos Deputados avaliam que o tribunal agiu "sem base legal" e que a decisão provoca a fragilização das regras fiscais.

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Fachada do Tribunal de Contas da União - Gabriela Biló - 14.abr.2023/Folhapress

Integrantes do TCU, por sua vez, avaliam que a determinação para "restituir limites pretéritos" não representa uma ordem direta de pagamento, apenas uma autorização, e atribuem a liberação da verba à interpretação da decisão feita pelo Executivo.

Procurado, o Ministério do Planejamento e Orçamento disse que "a abertura do crédito extraordinário cumpre as determinações do TCU". A corte de contas disse que as manifestações do tribunal constam nos acórdãos do processo e "não há informações adicionais disponíveis".

A origem do impasse está no teto de gastos, regra fiscal criada pelo governo Michel Temer (MDB) e que entrou em vigor em 2017.

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Em 2019, Ministério Público e Judiciário acionaram o TCU dizendo que teriam ficado com um espaço fiscal menor do que tinham direito.

O argumento era o de que o Executivo deixou de considerar em suas respectivas bases de cálculo o pagamento de auxílio-moradia a procuradores e magistrados em 2016, feito na ocasião por meio de crédito extraordinário —instrumento fora do alcance do teto de gastos, segundo a emenda constitucional que criou a regra.

Em duas decisões proferidas em 2019 e 2020, o TCU considerou que o auxílio-moradia era uma despesa de natureza corriqueira e determinou sua inclusão na base de cálculo. A relatoria era do ministro Bruno Dantas, hoje presidente da corte de contas.

O resultado prático foi a ampliação dos limites do MP e do Judiciário para 2020 em R$ 476 milhões, em valores da época. Mas o desfecho não encerrou o impasse. Os órgãos passaram a cobrar a restituição dos limites não concedidos entre 2017 e 2019.

O pedido foi atendido ainda em 2020, mas em forma de autorização, e a equipe econômica do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) não fez o pagamento. A resistência se manteve sob o governo Lula.

Em junho deste ano, o plenário do TCU voltou a analisar o caso a pedido do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Luís Roberto Barroso. Como Dantas tornou-se presidente da corte de contas, a relatoria ficou com o ministro Vital do Rêgo.

No julgamento, os ministros ignoraram a posição da própria área técnica do tribunal, contrária à recomposição retroativa, e deram um prazo de 30 dias para o Ministério do Planejamento e Orçamento cumprir as determinações, "de maneira a restituir, nos termos da presente deliberação, os limites de gastos pretéritos definidos para o Poder Judiciário".

O plenário também autorizou o governo a abrir um crédito extraordinário para efetuar o pagamento e descontar os valores da meta fiscal de 2024. Um mês depois, Lula editou a MP (medida provisória) para liberar a verba.

O Executivo ficou contrariado com a determinação do TCU. Mesmo fora das regras fiscais, o pagamento eleva a dívida pública brasileira.

O tema foi alvo de grande pressão nos bastidores. Ministros do TCU reticentes com o tema não queriam se indispor com o STF e a PGR (Procuradoria-Geral da República).

Além disso, segundo duas fontes que acompanharam as discussões, a diretoria-geral do STF encaminhou ao TCU um ofício pedindo a apuração da responsabilidade de servidores do Executivo pelo descumprimento das decisões anteriores. A solicitação foi interpretada pelo governo como uma forma de pressão.

Folha pediu ao TCU acesso às peças do processo, mas o tribunal informou que a ação ainda está em curso e, por isso, os documentos precisam ser solicitados com base na Lei de Acesso à Informação (que assegura um prazo de até 30 dias para a resposta do órgão). A reportagem também pediu os documentos ao STF, que não respondeu.

Técnicos do governo e da Câmara avaliam que a decisão cria precedentes perigosos, tanto para órgãos reivindicarem limites retroativos quanto para a flexibilização dos critérios de abertura de crédito extraordinário —instrumento reservado a despesas urgentes e imprevisíveis, conforme a Constituição Federal.

Em seu voto, o próprio relator no TCU reconheceu que, a rigor, a situação "não se enquadra entre aquelas autorizadas a ensejar a abertura de crédito extraordinário".

Procurado pela reportagem, o Planejamento evitou responder a esse ponto específico e disse considerar que a medida "cumpre as determinações do TCU".

Em nota técnica elaborada a pedido do deputado Cláudio Cajado (PP-BA), que foi relator do arcabouço fiscal na Casa, técnicos da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara afirmam que a apropriação de "espaços orçamentários pretéritos" é incompatível com o princípio da anualidade orçamentária e com a lógica de controle das despesas.

Os consultores argumentam ainda que a decisão subverte a lógica das regras fiscais vigentes no Brasil desde 2017. Tanto o teto de gastos quanto o arcabouço fiscal estabeleceram um limite máximo para as despesas, mas isso não significa um piso. No ano passado, por exemplo, o Judiciário executou 93,7% do limite autorizado.

Além da transformação de teto em piso, a nota elenca outros três efeitos deletérios da posição do TCU: a criação de precedentes para enquadrar como excepcionais despesas que não são urgentes nem imprevisíveis, o risco de um efeito dominó com reivindicações de outros órgãos por ampliação de limites e a fragilização de regras fiscais diante da exceção não prevista em lei.

A consultoria da Câmara também alerta para a finalidade dos recursos. Mais de 80% da verba vai custear despesas com pessoal. Uma parte ajudará a financiar o reajuste de 6% que entrou em vigor em fevereiro deste ano.

O Planejamento informou que "as programações atendidas pelo crédito em questão foram indicadas livremente pelos respectivos órgãos envolvidos, considerando suas necessidades orçamentárias".

No Congresso, já há emendas à MP propondo antecipar para outubro deste ano a concessão de outra parcela de 6,13% de reajuste aprovada para fevereiro de 2025. Outra emenda sugere direcionar recursos para o programa de saúde suplementar.

Prestes Maia, o Haussmann paulistano, Vicente Vilardaga, FSP

 

São Paulo

Se houve um prefeito decisivo, que definiu a nova configuração urbana de São Paulo, foi o engenheiro e arquiteto Francisco Prestes Maia (1896-1965). Ele governou a cidade entre 1938 e 1945 e, depois, entre 1961 e 1965. Foi um grande responsável pela construção da paisagem atual da metrópole, preparando as vias expressas para os automóveis e asfixiando os rios da cidade com avenidas no fundo de vale. Sob certo sentido, Prestes Maia pode ser considerado uma espécie de Haussmann local.

Georges-Eugène Haussmann (1809-1891) foi também prefeito e urbanista, como o brasileiro, e embelezou Paris a seu gosto e deleite, com um plano de abrir doze avenidas radiais em torno do Arco do Triunfo.

O projeto de Haussmann, que virou um padrão mundial para grandes reformas urbanísticas, previa a demolição de quase 20 mil imóveis e a construção de 34 mil no lugar. Saiu do papel em 1853 e continuou a ser implantado até a década de 1920. Suas ideias foram exportadas para várias cidades, entre elas Barcelona, Buenos Aires, Rio de Janeiro e São Paulo.

O prefeito de São Paulo Francisco Prestes Maia concede entrevista ao jornal Última Hora, em 1965

O centro de Paris, como a conhecemos hoje, foi Haussmann quem inventou. Em outra escala e na província, a capital paulista passou por um processo semelhante. Foi uma reurbanização mais tardia do que a do Rio, por exemplo, onde o prefeito Francisco Pereira Passos já na primeira década do século passado, construía grandes avenidas no coração da cidade.

Haussmann e Prestes Maia se diferem em muitos aspectos. Primeiro, pela grandiosidade do projeto de Haussmann. Muitas mudanças foram feitas em São Paulo, mas nada que se compare a Paris.

Na sua reforma, o francês pensou e executou uma grande rede de saneamento básico, ruas largas, grandes estações de trem e parques, enquanto o brasileiro pensava em carros e caminhões e pouco fez pela implantação do metrô ou em prol do saneamento.

Túnel na avenida 9 de Julho em1956: Prestes Maia concebeu um plano de avenidas para a cidade

Outra diferença é a do período histórico em que os dois trabalharam. Haussmann atuou na segunda metade do século 19, quando os trens eram a novidade. Já Prestes Maia é da era dos carros. Em uma viagem para os Estados Unidos foi visitar as fábricas da GM e da Ford. Maia estava mais ligado ao modelo urbanístico americano que ao europeu.

O que Haussmann e Prestes Maia têm em comum é a vontade de intervir na metrópole. É impressionante a lista de algumas obras executadas durante o governo de Maia. Começa com a urbanização do Vale do Anhangabaú, a abertura da Avenida Tiradentes e a construção do estádio do Pacaembu.

Passa pelo Viaduto Jacareí, pela ponte das Bandeiras e pelo túnel da avenida 9 de Julho. E chega no alargamento da rua Xavier de Toledo e das avenidas Liberdade, Vieira de Carvalho e Pacaembu.

A 23 de Maio foi concebida durante seu governo, mas foi inaugurada em 1969, por Faria Lima, ligando o Centro ao Aeroporto de Congonhas. Maia também retificou o rio Tamanduateí e pavimentou a avenida do Estado.

Fachada de prédio da Haussmann, em 2024: vias radiais e planos de habitação para a alta renda

Com seu plano de avenidas, Haussmann pretendeu tirar os pobres do região central e construir mansões no novo eixo viário, que foram erguidas entre 1860 e 1868 sobre as ruínas da cidade antiga. Ele também pensava no rápido acesso da polícia a áreas conturbadas do subúrbio. Para completar, o urbanista cobriu a cidade de belos prédios padronizados e amplos bulevares.

Ambos foram artistas demolidores, no sentido que seus projetos se ergueram em cima da ruínas, sobre um passado de construções ancestrais, rios e também sobre pequenas casas e estabelecimentos comerciais.

É uma paisagem em mutação. No caso de São Paulo, constante. A cidade não para de mudar. Diante de sua grande transformação nos últimos tempos, Prestes Maia virou só mais um prefeito obreiro do passado. Haussmann viu a totalidade de sua obra faraônica, a construção da Cidade Luz, permanecer.