segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Marcos Lisboa: ‘Delfim continua influente entre a esquerda e a direita’, OESP

 Dentre as principais contribuições de Delfim Netto – morto nesta segunda-feira, 12, aos 96 anos – para a economia brasileira, estão as conclusões de sua tese de livre-docência, “O Problema do Café no Brasil”. “Aquela tese é impressionante mesmo 65 anos depois. Quando ele escreveu, o Brasil tinha uma dependência do comércio exterior do café, e as oscilações do preço do café pressionavam a taxa de câmbio. Então, ele aborda esse tema da necessidade de diversificar a pauta de exportações do País”, diz o economista Marcos Lisboa. Para ele, os estudos de Delfim para entender as dificuldades do agro brasileiro e a posterior criação de um grupo de trabalho para analisar o problema foram chaves no surgimento da Embrapa.

Lisboa afirma, porém, que, no Ministério da Fazenda, Delfim adotou uma postura intervencionista, o que o levou ao fracasso. Acrescenta que esse modo de ver a atuação do Estado se difundiu pelo País. “Essa abordagem, infelizmente, continua dominante no Brasil entre a esquerda e a direita. Não à toa, Delfim continua influente entre a esquerda e a direita.”

Qual a importância de Delfim para a economia brasileira?

O Delfim tem algumas contribuições importantes para a economia brasileira pouco reconhecidas. Uma delas decorre da tese de livre-docência dele: “O Problema do Café no Brasil”. Aquela tese é impressionante mesmo 65 anos depois. Quando ele escreveu, o Brasil tinha uma dependência do comércio exterior do café, e as oscilações do preço pressionavam a taxa de câmbio. Então, ele aborda esse tema da necessidade de diversificar a pauta de exportações do País. Naquele período, nossa agricultura, ao contrário da lenda, não era grande coisa. O ponto era entender porque ela tinha dificuldade para se expandir e diversificar a pauta de exportações. Aí ele monta, já como ministro, um grupo de trabalho para entender o problema. O grupo chega à conclusão de que o solo, em várias regiões, era pobre em nutrientes e de que boa parte dos grãos, como a soja, era desenvolvido para países temperados, não tropicais. Portanto, tinha de desenvolver tecnologia para tropicalizar a agricultura. Daí que sai a Embrapa, formada por um grupo genial liderado por Eliseu Alves. Acho que essa foi a política de desenvolvimento mais bem sucedida do Brasil. Ela diversificou a pauta brasileira e colaborou para resolver os velhos problemas de restrição nas contas externas. Então, o Delfim tem um trabalho acadêmico impressionante e depois tem esse impacto na economia do País que dá benefícios até hoje: o custo da alimentação no Brasil despencou em 50 anos e o País tem um agro moderno, que fortalece as contas externas

Como avalia o trabalho dele como ministro da Fazenda?

Tem esse outro lado do Delfim, que é o lado intervencionista. É preciso separar a importância do Estado para o desenvolvimento e a forma como o Estado atua. O Estado é fundamental para o desenvolvimento, para criar marcos regulatórios e estimular a concorrência. Mas também pode atuar discricionariamente selecionando empresas e intervindo em preço. Delfim era dessa segunda escola, de colocar o Estado atuando em preços, por exemplo. Aí acho que o Delfim é filho de sua época, de quando se via que o Estado tinha de entrar discricionariamente. Ele fez isso no governo Médici, o que agravou uma crise que se anunciava com a explosão do preço das commodities no mundo. Ele fez isso também no governo Figueiredo, controlando o câmbio, e isso fracassou. Mas, para mérito dele, depois desse fracasso, ele e o Affonso Celso Pastore conseguiram tirar o País de uma grave recessão e entregá-lo com uma inflação alta, mas estável. Também recuperaram parte das contas externas do País.

Lisboa: 'Delfim tinha a habilidade da conversa, da troca de ideias, de construir pontes'
Lisboa: 'Delfim tinha a habilidade da conversa, da troca de ideias, de construir pontes' Foto: WERTHER SANTANA

Como vê a participação de Delfim na ditadura?

A ditadura foi deplorável, e o Delfim teve participação importante no governo Médici e no AI-5.

Qual o legado dele?

Naturalmente, a participação na ditadura foi deplorável, e acaba deixando de lado o cuidado que ele tinha em acompanhar a teoria econômica e as evidências. Fez parte de uma USP dos anos 50, com Alice Canabrava e Luiz Bueno, que formou uma geração dos melhores economistas brasileiros, com muita atenção à evidência e a acompanhar mudanças na economia e nos dados. Isso se perdeu um pouco. Depois, ficou essa abordagem intervencionista discricionária, difusa no País. Essa abordagem, infelizmente, continua dominante no País entre a esquerda e a direita. Não à toa, Delfim continua influente entre a esquerda e a direita. No fim da vida, me aproximei dele. A gente deixava nossas diferenças de lado. Ele tinha a habilidade da conversa, da troca de ideias, de construir pontes. Era uma pessoa muito surpreendente. Tinha opiniões criativas, originais. A gente trocava e-mails sobre colunas. Ele me criticava de maneira indireta, e eu ria. Mas era uma conversa sempre muito instigante.

Isabelle Moreira Lima - Já sentiu na taça o retrogosto do dinheiro?, FSP

 Na última semana, o vinho se viu no foco do noticiário —e não pelos motivos mais nobres. É difícil que você não saiba do que estou falando: uma operação da Receita Federal envolvendo um dos mais premiados restaurantes do país atualmente, o Tuju, e uma importadora focada em alguns dos melhores produtores do mundo, a Clarets, apreendeu 442 garrafas de vinhos de alta gama (ou seja, caríssimos) para investigar a possibilidade de descaminho.

A apreensão aconteceu na última quarta-feira (7) e se você sabe pouco sobre o ocorrido, sugiro ler o que duas colegas publicaram nesta FolhaMônica Bergamo, que trouxe detalhes no calor da hora, e Tânia Nogueira, que esmiuçou o que significa a sonegação fiscal e trouxe números.

Para além das graves acusações de descaminho e crime fiscal, que têm sido discutidas na última semana, me impressionou uma cifra específica ainda pouco comentada. O evento que possivelmente foi o estopim da apreensão era um jantar em que seriam servidos "os 18 mais icônicos vinhos americanos, todos com a pontuação 100 Robert Parker". Esses rótulos acompanhariam um menu de dez tempos, criado para harmonizar com as características das bebidas. O banquete serviria apenas 17 pessoas, com ingressos a R$ 14.990, mais 15% de serviço. Catorze mil, novecentos e noventa reais. Foi aqui que engasguei.

Ambiente do restaurante Tuju
Ambiente do restaurante Tuju - Rubens Kato/Divulgação

O valor do menu de dez etapas no Tuju custa a partir de R$ 990, sem serviço. Restam impressionantes R$ 14 mil para os vinhos que seriam consumidos ao longo do jantar. Vale dizer que esse não é o valor que o restaurante cobra em suas harmonizações para o cliente habitual; era um evento especial.

Mas o engasgo continua: faz sentido pagar tanto por vinhos? A pergunta gira em minha cabeça a cada nova degustação de rótulos que estariam "entre os melhores do mundo". A resposta seria negativa em qualquer lugar, mas, no Brasil, um dos países mais desiguais do planeta, a situação é mais pornográfica.

Já discuti em outra coluna o que faz um vinho custar mais: a reputação do produtor, a valorização do lugar de onde vem a bebida, a produção reduzida, o reconhecimento da crítica. Essas questões, às vezes, explicam melhor o valor de um vinho do que o líquido que vai na taça. Por mais que se ame vinho, quando consumimos algo no patamar de preço do tal jantar a coisa definitivamente não diz mais respeito à bebida. Nem é uma questão de marca. O que se bebe é o dinheiro; o vinho vira dinheiro, é só dinheiro.

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E para que bebemos vinhos? Arrisco dizer que eles podem nos fazer viajar para dentro de nós mesmos, assim como podem nos levar a conhecer mais e melhor quem já conhecemos bem. Eles podem criar ambientes festivos e ajudam a marcar datas importantes. Também nos ensinam sobre partes do mundo mais distantes e sua história, suas tradições e costumes. Podem nos relaxar, nos divertir, aguçar nosso olfato e nossas papilas. E essas experiências não são para milionários, por mais que alguns tentem nos convencer do contrário.

Como prova, aqui vão sete rótulos —que me deixaram apaixonada— para quem quer sentir as notas do vinho, não de outra coisa.

Vinho branco espanhol O Luar do Sil Godello Valdeorras D.O. 2022
Vinho branco espanhol O Luar do Sil Godello Valdeorras D.O. 2022 - Divulgação

Para quem é de borbulhas, o português Filipa Pato 3b Brut Rosé (R$ 206 na Casa Flora) é chique e feito por uma grande enóloga; e o brasileiro L.A. Jovem Brut (R$ 105 na loja online da vinícola Luiz Argenta) é fresco e vem numa garrafa linda. Entre os brancos, o sul-africano Mother Rock Force Celeste Chenin Blanc, 2022 (R$ 190 na Wines4U) é moderno, elétrico e intenso; e o espanhol O Luar do Sil Godello Valdeorras D.O. 2022 (R$ 242 na Grand Cru) é clássico, mineral e untuoso.

Para quem ama tintos, o Château Marjosse Rouge 2020 (R$ 284,15 na Mistral) vem do projeto pessoal de uma lenda viva, Pierre Lurton, que dirige os châteaux Cheval Blanc e d’Yquem. Para quem ama Rhône, o Domaine Gramenon La Belle Sortie, 2020 (R$ 225 na De la Croix) é um deslumbre.

Por fim, um bom Jerez é o Sánchez Romate Manzanilla Viva La Pepa (R$ 189 na Belle Cave), que vale cada gota.

Jerez Sánchez Romate Manzanilla Viva La Pepa
Jerez Sánchez Romate Manzanilla Viva La Pepa - Divulgação

Celso Rocha de Barros - Por que a democracia brasileira sobreviveu?. FSP

 Em "Por que a democracia brasileira não morreu?", os cientistas políticos Marcus André Melo e Carlos Pereira discutem por que a democracia brasileira sobreviveu à crise política que começou com os protestos de 2013 e durou até o fracasso da tentativa de golpe de Jair Bolsonaro.

O livro tem duas teses. Uma é muito mais bem demonstrada que a outra.

Os autores estão certos quando dizem que a culpa das últimas crises políticas não é do presidencialismo de coalizão. Aqui Melo e Pereira jogam em casa: são autores de um livro clássico sobre como o sistema político brasileiro funciona melhor do que se pensa ("Making Brazil Work", de 2013).

O então presidente Jair Bolsonaro (PL) cumprimenta apoiadores em ato com pedidos de intervenção militar em frente ao QG do Exército, em 2020 - Pedro Ladeira - 19.abr.2020/Folhapress

Embora acertada, a análise merece um matiz: além dos choques externos, sofremos com legados históricos que enviesaram nosso sistema para a direita. Fizemos nossa transição à democracia com a classe política herdada da ditadura, fortemente conservadora (pois a esquerda foi perseguida) e bastante corrupta (pois na ditadura conviveram grandes projetos de desenvolvimento e ausência de controle institucional).

Por outro lado, em um país desigual como o Brasil, era de se esperar que a esquerda fosse bem-sucedida em eleições majoritárias (como a presidencial). Isso teria criado crises quando a esquerda chegasse ao poder em qualquer cenário.

Por outro lado, discordo dos autores quando dizem que, durante o bolsonarismo, a democracia nunca correu risco sério. Essa tese não é demonstrada pelo fracasso do golpe: se um investimento deu certo, isso não quer dizer que o capitalista nunca correu risco nenhum. Rebeca Andrade é uma heroína nacional exatamente porque derrotar Simone Biles era altamente improvável antes da prova.

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Os autores apresentam bons argumentos sobre a complexidade institucional brasileira contemporânea, que tornaria uma centralização autoritária mais difícil. Entretanto, regimes autoritários podem lidar com alguma complexidade: a própria ditadura de 64 foi institucionalmente mais complexa que, por exemplo, o Estado Novo, sem deixar de ser autoritária.

Talvez uma ditadura Bolsonaro fosse só um passo além da complexidade do regime de 64; ou talvez fosse muito mais violenta, destruindo parte da complexidade institucional em que Melo e Pereira talvez apostem fichas demais.

De longe, a maior falha do livro é a análise muito apressada dos militares. As investigações da Polícia Federal sugerem que a luta interna nas Forças Armadas, sobre a qual ainda não sabemos o suficiente, foi muito importante para o fracasso dos extremistas. O livro não dedica muita atenção aos resultados dessas investigações.

Valeria a pena também discutir como a política brasileira mostrou-se —e ainda se mostra— pronta a acomodar golpistas. A bancada bolsonarista, que em 30 de novembro de 2022 pediu golpe dentro do Congresso Nacional, continua a ser tratada como parte legítima do jogo democrático. Há candidatos à Presidência do Senado negociando impeachment de ministro do STF para conseguir votos dos bolsonaristas.

Melo e Pereira conhecem o funcionamento do sistema político brasileiro de trás para frente, mas por vezes subestimam o peso de sua história, bem como as lutas que ocorrem fora dele (no Exército, por exemplo). De qualquer forma, é um livro que faz as perguntas grandes, e já vem suscitando boas conversas.