segunda-feira, 12 de agosto de 2024

A VISITA, Antonio Carlos Augusto Gama

  Ele bateu à porta na véspera do dia dos pais. 


 Passava da meia-noite, e a inesperada presença o incomodou.

 Depois de tanto tempo, por que foi aparecer logo agora?

 Lembrava-se de que ele desprezava essas datas comemorativas, forjadas por interesses comerciais. Acabou por ter a mesma conduta, sempre repetindo à família que não queria festejos, nem presentes. 

 Sabia, porém, que era inútil. Amanhã a casa seria tomada pela turba ruidosa de filhos, genros, noras e netos. No fundo, isso não o desagradava, apenas não via sentido em ser homenageado pela simples condição de pai.

 Mantiveram uma relação tempestuosa durante toda a vida, com inúmeros conflitos e poucos pontos de convergência, o que talvez explicasse o distanciamento gradual, que um dia se tornou definitivo.

 Fitando-se de perto, verificou que, passados os anos, ele parecia o mesmo do retrato na estante. A mesma fronte alta, com cabelos ralos e embranquecidos, mas volumosos e encaracolados nas laterais e na nuca. O mesmo olhar ressabiado, o mesmo esboço de sorriso, com algo de sarcástico. As mesmas mãos de palmas largas e dedos curtos, “mãos de semeador”, costumava ele dizer. Apresentava ainda a mesma inquietude, o mesmo andar apressado, o mesmo jeito de sentar e balançar as pernas. 

 A voz também era quase a mesma, mas não era preciso falar. Ele sempre apreciara o silêncio da noite.

 De vez.  em quando ele se levantava, ia até ao banheiro, ou à cozinha tomar água e café. De volta à sala, remexia nos livros da estante, folheava, lia algumas páginas, antes de recolocar na prateleira.

 Acabou por adormecer na poltrona, com um livro entreaberto nas mãos.

 Amanhecia quando finalmente resolveu se deitar. 

 Ao entrar no quarto, o espelho do armário trocou com ele o mesmo olhar do retrato na estante da sala.



domingo, 11 de agosto de 2024

Ruy Castro - Os donos da nossa vontade, FSP

 Um debate de que participei nesta terça (6), na Livraria da Travessa, com meus confrades Rosiska Darcy de Oliveira e Joaquim Falcão, da Academia Brasileira de Letras, e o jornalista Fernando Gabeira, tratou da ameaça que pende sobre a palavra escrita diante da inteligência artificial. Discutiu-se a diferença entre as medidas tomadas contra a palavra no decorrer da história —fechamento de gráficas, censura prévia, apreensão de livros e jornais, perseguição, prisão e até morte de escritores e jornalistas— e as atuais, incorpóreas, intangíveis e talvez inimputáveis.

A diferença é que aquelas medidas eram materiais, possíveis de ser enfrentadas. Hoje, não se trata mais de apagar a palavra, mas de nos induzir a usá-la contra nós mesmos. Uma simples consulta ao extrato bancário ou sobre qualquer assunto no celular permite aos algoritmos aprenderem instantaneamente tudo a nosso respeito e repassá-lo a um ente abstrato, que passa a decidir sobre o que queremos ou precisamos. O Google tornou-se dono da nossa vontade.

Em cerca de 400 a.C., Aristóteles codificou o silogismo, o processo em que duas premissas conduzem a um conhecimento lógico, à conclusão. Esses três elementos, as premissas e a conclusão, foram a base de tudo que fizemos até hoje. Ou até ontem porque, de repente, tornamo-nos meras extensões de um sistema binário que nos reduziu a um sim ou não, a um isto ou aquilo, sem as zonas de dúvida e de sombra que nos tornam humanos.

E o que dizer do mundo que agora cabe na palma da mão, ao alcance do dedo de uma criança, e faz com que as necessidades dessa criança sejam satisfeitas em 1 segundo, aviltando-a, dispensando-a da experiência do convívio e da socialização?

Não foi um debate exatamente otimista. Aventou-se a hipótese de termos sido invadidos por seres de outro planeta. Mas pode ser pior. Talvez eles já nos tenham roubado o planeta.

Mario Sergio Conti - 'Bambino a Roma' busca as raízes de um ego e do Brasil, FSP

 O protagonista e narrador de "Bambino a Roma", o novo romance de Chico Buarque, é um menino que perambula por três idiomas e ambientes de uma cidade estrangeira. É nela, em meados dos anos 1950, que forma sua identidade.

Fala português em casa com a família; em inglês com os colegas e professores de uma escola americana; em italiano na rua com amigos e passantes. Topa o que der e vier, vive com intensidade e sem dramas.

Uns o chamam de Brasiliano, outros de Francesco e ele diz que é Frank, "mas o apelido não pegou". Embora o nome não seja assumido, fica implícito que se chama Francisco, Chico. A partir do título, é tão somente um bambino, um garoto qualquer, se bem que forasteiro.

Chico Buarque transforma em literatura as vivências do moleque porque toda criança é um tanto estrangeira —tem de se virar num mundo até então desconhecido. O personagem aprende línguas, descobre a cidade, forja a personalidade. "Bambino a Roma" é um romance de formação.

Embora sua mãe lhe dê um diário para anotar as aventuras romanas, ele prescinde do registro no calor da hora. Deixa o tempo passar para que suas lembranças se sedimentem e possa, 70 anos depois, trabalhá-las artisticamente.

Sorte nossa ter sido assim, pois o resultado é uma recriação da infância na qual a alegria dá o tom. A prosa substantiva e ágil encadeia imagens da felicidade plena, as da aurora da vida. Como diz Deus, também conhecido como Proust: "Os verdadeiros paraísos são os que perdemos".

Sem saudade nem lamúria, o romance desfila as madalenas de tempos idos e perdidos: chutar a bola de capotão, espiar a irmã nua, andar de ambulância com o apêndice supurado, temer o papa caquético, pedalar a bicicleta niquelada, ter as primeiras ereções, comer mexerica, apaixonar-se.

Ainda que o romance não tenha nada a ver com a canção, a justaposição acelerada de imagens fantasiosas lembra um pouco "João e Maria", a valsinha de Sivuca para a qual Chico Buarque fez a letra:

"Agora eu era o herói

e meu cavalo só falava inglês.

A noiva do caubói

era você além das outras três."

Livro raro na literatura nacional, "Bambino a Roma" não é único. Dando o devido desconto à assimetria da situação de um e outro –uma capital europeia no século 20, uma roça mineira no 19–, "Bambino a Roma" tem um quê de "Minha Vida de Menina", o diário de Helena Morley.

A ilustração é dividida horizontalmente em duas partes. A primeira, de baixo, representa parte do rosto de um homem em tons amarelos e azuis. A parte de cima é clara e sai do topo da cabeça deste homem junto com pequenos desenhos em linhas pretas: uma mexerica descascada, um quadro com a imagem de um papa, um garoto de bicicleta e um mapa da Itália.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti de 9 de agosto de 2024 - Bruna Barros/Folhapress

Eles compartilham a sintaxe sem floreios e o léxico trivial. A prosa modernista, um achado no livro de Helena Morley, comprova sua permanência e pertinência no de Chico Buarque.

Há outra afinidade entre os livros. Como se fossem etapas da formação do ego, o enredo de ambos põe em primeiro plano as estrepolias na infância. Mas o que se vislumbra, no conteúdo e na montagem do enredo, é a busca de outras raízes, as do Brasil.

Essa articulação é doméstica e explícita em "Bambino a Roma". O menino, fanático pelos livros de Emilio Salgari, vai a uma grande livraria procurar as aventuras de Sandokan e de Yolanda, a Filha do Corsário Negro.

Um funcionário o deixa de lado para atender um fã de Gramsci, o teórico do atraso capitalista. Fuça as prateleiras e encontra "Alle Radici del Brasile", a tradução de "Raízes do Brasil". Diz quatro vezes "é o livro do meu pai!"; compra Sergio Buarque de Holanda em vez de Salgari.

O bambino compara várias vezes o Brasil à Itália. Conta que as cozinheiras no seu apartamento "se sucediam rapidamente e vinham todas da Sardenha". Gostava mais da que partira, "sentia falta da anterior a anterior" e conclui que nenhuma era tão boa quanto Aparecida.

Era uma preta bonita que fazia o melhor feijão preto de São Paulo, lavava, pendurava e passava as roupas, varria os quartos, arrumava as camas, regava as plantas e esfregava o chão. "Não me lembro de mim antes dela", escreve.

Não se trata apenas de lembranças. O Brasil chega ao garoto por meio do cinema, da televisão e do toca-discos. Escuta marchinhas de Carnaval. Assiste a "O Cangaceiro" e canta "Olé mulher rendeira/ Olé mulher renda".

Acompanha na vitrine de uma loja a transmissão do jogo do Brasil contra a Hungria, na Copa de 1954. Informa aos em torno que "o centroavante Índio não morava na selva" e Djalma Santos e Nilton Santos não eram irmãos, "tanto que um era preto e o outro, branco".

No final do romance, o narrador deixa de ser menino de uma hora para outra e volta a Roma. É um adulto amargo que deambula a esmo. Como o país de onde veio, perdeu a poesia da infância, não sabe quem é nem aonde vai.