Ele bateu à porta na véspera do dia dos pais.
Passava da meia-noite, e a inesperada presença o incomodou.
Depois de tanto tempo, por que foi aparecer logo agora?
Lembrava-se de que ele desprezava essas datas comemorativas, forjadas por interesses comerciais. Acabou por ter a mesma conduta, sempre repetindo à família que não queria festejos, nem presentes.
Sabia, porém, que era inútil. Amanhã a casa seria tomada pela turba ruidosa de filhos, genros, noras e netos. No fundo, isso não o desagradava, apenas não via sentido em ser homenageado pela simples condição de pai.
Mantiveram uma relação tempestuosa durante toda a vida, com inúmeros conflitos e poucos pontos de convergência, o que talvez explicasse o distanciamento gradual, que um dia se tornou definitivo.
Fitando-se de perto, verificou que, passados os anos, ele parecia o mesmo do retrato na estante. A mesma fronte alta, com cabelos ralos e embranquecidos, mas volumosos e encaracolados nas laterais e na nuca. O mesmo olhar ressabiado, o mesmo esboço de sorriso, com algo de sarcástico. As mesmas mãos de palmas largas e dedos curtos, “mãos de semeador”, costumava ele dizer. Apresentava ainda a mesma inquietude, o mesmo andar apressado, o mesmo jeito de sentar e balançar as pernas.
A voz também era quase a mesma, mas não era preciso falar. Ele sempre apreciara o silêncio da noite.
De vez. em quando ele se levantava, ia até ao banheiro, ou à cozinha tomar água e café. De volta à sala, remexia nos livros da estante, folheava, lia algumas páginas, antes de recolocar na prateleira.
Acabou por adormecer na poltrona, com um livro entreaberto nas mãos.
Amanhecia quando finalmente resolveu se deitar.
Ao entrar no quarto, o espelho do armário trocou com ele o mesmo olhar do retrato na estante da sala.
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