quarta-feira, 3 de julho de 2024

Drauzio Varella - Flavorizantes tóxicos, FSP

 Cada geração de adolescentes vive seus tormentos. Na minha foram os cigarros, moda que nos aprisionou na dependência de nicotina, para tirar a vida dos que não conseguiram se livrar dela. Os adolescentes de hoje caem na armadilha defumar cigarros eletrônicos.

Apresentados como forma de reduzir danos para fumantes de tabaco, os eletrônicos trazem um dispositivo que contém uma solução de nicotina, a droga que provoca a mais feroz das dependências químicas.

Vemos uma figura insólita. Uma jovem de perfil fuma um cigarro eletrônico. Junto ao cigarro vemos uma quantidade grande de frutas e flores que deveriam perfumar o ambiente, porém logo por traz dessa barreira perfumada, vemos que as frutas estão podres e estão junto de vermes, moscas e outras coisas pútridas. A jovem também não está bem. Ela tem apenas a face encarnada como uma máscara e o resto de seu corpo está descarnado. Ela já é um esqueleto fumante, porém a expressão da máscara é indiferente
Líbero - Líbero/Folhapress

Com a experiência da queda nas vendas do cigarro comum, a indústria aprendeu que precisava vencer os obstáculos do hálito repulsivo causado por ele e o mau cheiro que deixa no corpo, nas roupas e no ambiente.

Para não reincidir no erro, lançaram mão dos flavorizantes que, adicionados ao reservatório em mistura com a nicotina, têm cheiro e sabor de frutas, chocolate, balas, sorvete de creme e outros tão ao gosto da criançada.

Os fabricantes falam que esses compostos já provaram ser seguros para uso em seres humanos. É mentira. Eles esquecem de dizer que a segurança foi testada para uso na indústria alimentícia e na cosmética, jamais para irem parar nos pulmões.

Resultantes da decomposição pelo aquecimento —pirólise— no interior do dispositivo eletrônico, os subprodutos desses flavorizantes são menos conhecidos ainda.

Milhões de pessoas tomam vitamina E, com efeitos colaterais insignificantes. Quando adicionada aos eletrônicos, entretanto, os mais de dez compostos químicos resultantes de sua degradação pelo calor foram responsáveis pelos casos de Evali, uma inflamação pulmonar, que levaram à hospitalização de 2.087 americanos e a 68 mortes por insuficiência respiratória. Prezada leitora, você imaginaria que uma vitamina seria capaz de provocar um desastre dessas dimensões?

Na composição original dos eletrônicos, havia em seus reservatórios apenas quatro componentes: nicotina, água e dois compostos químicos. Quando foram lançados comercialmente em meados do ano 2000, entretanto, o número de substâncias acrescentadas aumentou de forma dramática. Atualmente, há pelo menos 180 substâncias combinadas em diversas proporções para obter o sabor desejado.

Um estudo europeu mostrou que a média é de seis flavorizantes por reservatório. Pesquisa semelhante conduzida nos Estados Unidos revelou que esse número variava de 22 a 47. Nesses dois estudos, e em diversos outros, a proporção de flavorizantes foi maior do que a de nicotina.

Já fiz reflexões semelhantes nesta coluna diversasvezes. Volto a elas motivado pelos dados obtidos num estudo científico de alta qualidade, publicado em maio pela revista Nature, uma das mais respeitadas pela comunidade científica internacional.

O grupo de Akira Kishimoto, do Royal College of Surgeons, da Irlanda, se propôs a avaliar a toxicidade dos produtos de degradação térmica desses flavorizantes adicionados aos cigarros eletrônicos.

A metodologia empregada foi altamente tecnológica e envolveu métodos como construção de redes neurais, espectrometria de impacto eletrônico, estudos computacionais e acesso às bases de dados que relacionam os principais problemas de saúde associados aos compostos químicos empregados. Os dados obtidos foram tabulados por inteligência artificial.

Os estudos se concentraram nos 180 flavorizantes presentes nas principais marcas encontradas no mercado. Entre eles, há ésteres, aldeídos, cetonas, hidrocarbonetos aromáticos, álcoois e acetatos.

Como o cigarro eletrônico funciona por aquecimento da solução contida no reservatório, a pirólise quebra essas moléculas em subprodutos mal conhecidos. Os bancos de dados permitiram identificar 127 compostos químicos capazes de provocar toxicidade aguda, 153 causadores de outros agravos à saúde e 225 irritantes para os pulmões e demais órgãos do trato respiratório.

Modelos de inteligência artificial identificaram 500 compostos químicos tóxicos. O principal problema para avaliar os efeitos dessa nova forma de administrar nicotina que se dissemina entre crianças e adolescentes é que os piores efeitos do fumo surgem após décadas de uso.

Quanto tempo levamos para demonstrar que o cigarro comum era causa de câncer, doenças cardiovasculares e enfisema? Desta vez não podemos esperar as mortes para agir. Temos de educar os mais jovens e a sociedade, mostrar os malefícios que essa praga representa.

Projeto que regulamenta hidrogênio verde deve excluir benefício para exportação, FSP

 3.jul.2024 às 18h51

BRASÍLIA

Senado Federal concluiu nesta quarta-feira (3) a votação do projeto de lei que cria o marco legal do hidrogênio de baixa emissão de carbono, chamado de hidrogênio verde, e decidiu que o texto não terá a previsão da ZPE (Zona de Processamento e Exportação) expandida.

A votação começou no mês passado, quando o plenário aprovou o texto-base, mas a análise dos destaques (sugestões de mudanças) foi concluída nesta quarta diante de divergências entre o relator, Otto Alencar (PSD-BA), e o senador Cid Gomes (PDT-CE) sobre as ZPEs.

As ZPEs comuns já existem, são áreas de instalação de indústrias voltadas à exportação e importação que são submetidas a um regime fiscal específico. Essas áreas foram criadas para incentivar essas atividades.

O texto do hidrogênio verde que saiu da comissão especial sobre o tema ampliava esses incentivos fiscais para toda a cadeia produtiva de insumos e de armazenamento do hidrogênio, independente do local onde a empresa estivesse instalada.

Usina de hidrogênio de baixo carbono na Espanha - Valentin Bontemps/ - 18.abr.2023/AFP

O líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), apresentou um destaque para excluir esse trecho. Porém, na sessão que iniciou a deliberação, o relator da proposta acatou o pedido de Wagner no próprio plenário, sem que a decisão constasse no relatório.

Cid Gomes reclamou da manobra e apresentou, então, um novo destaque, para que o trecho fosse recolocado no projeto. A votação aconteceu nesta quarta, com derrota para o cearense.

O projeto cria o Rehidro (Regime Especial de Incentivos para a Produção de Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono), a Política Nacional do Hidrogênio de Baixa Emissão e o Programa de Desenvolvimento deste hidrogênio.

O Rehidro concede crédito fiscal dentro da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). O crédito pode ser convertido em ressarcimento financeiro caso não haja débitos em impostos suficientes para compensar a quantia.

O PL propõe ampliar a previsão de incentivos fiscais para esse mercado a um total de R$ 18 bilhões durante cinco anos: R$ 1,7 bilhão em 2028, R$ 2,9 bi em 2029, R$ 4,2 bi em 2030 e R$ 4,5 bi em 2031 e R$ 5 bilhões em 2032.

Quando foi aprovado na comissão específica sobre o tema, a previsão era que os incentivos valessem por quatro anos, com um teto anual de R$ 1,7 bilhão em 2027, R$ 2,9 bi em 2028, R$ 4,2 bi em 2029 e R$ 4,5 bi em 2030 —somando R$ 13 bilhões.

O texto precisará passar novamente pela Câmara dos Deputados, já que sofreu alterações.


O juiz celebridade precisa acabar, Wilson Gomes, FSP

 Sou de uma geração que, ao alcançar a idade do discernimento moral e do entendimento do mundo, achou-se sob uma ditadura militar. Uma geração que não apenas viveu boa parte da vida sob um regime ditatorial, mas cujos pais haviam experimentado duas ditaduras.

Um jovem dos anos 1980 nem sequer conseguia discernir se o país vivia sob um regime democrático frequentemente interrompido por longas ditaduras ou se saltava de ditadura em ditadura com breves intervalos democráticos. Daí o assombro de quase ver a história se repetir em 2023, quando bolsonarismo achou que já era tempo demais de recreio democrático e saiu num domingo de sol para dar um golpe como quem sai para um passeio no parque.

Para a minha geração, portanto, é impossível não reconhecer o fato de o STF ter se demonstrado uma instituição capaz de enfrentar com firmeza os arroubos ditatoriais do pretendente a tirano. Não se trata apenas da reação dura e sem hesitação à intentona de 8 de janeiro. Refiro-me, sobretudo, aos quatro longos anos em que Bolsonaro e o bolsonarismo testaram os limites da democracia, capturaram instituições, sondaram a tolerância da imprensa e, enfim, procuraram brechas na defesa do STF.

Na ilustração de Ariel Severino, o braço de um juiz, com toga preta de seda de grife, segura com sua mão o martelo de ditar sentenças.  O martelo tem a textura e visual dos famosos azulejos portugueses, a base onde bate o martelo é de cristal maciço e tem brilhos dourados provocados pelos holofotes que iluminam a cena.  Tudo se desenvolve sobre um tapete vermelho que vai de lado a lado da ilustração. O fundo é escuro para destacar os fachos dos holofotes.
Ilustração de Ariel Severino para Wilson Gomes de 3 de julho de 2024 - Ariel Severino/Folhapress

A cada investida, um rechaço, e a cada rechaço, um discurso histriônico, um vídeo histérico, uma profusão de ameaças explícitas e nominais. Não é à toa que o juiz Alexandre de Moraes estava "no caderninho" dos que precisavam ser removidos à força do caminho.

Além disso, é impossível não admirar os tantos avanços progressistas que um STF predominantemente esclarecido e convictamente democrático foi capaz de garantir em seus julgamentos na última década.

Por isso, vejo com desconforto juízes da Corte se esforçarem para jogar fora o patrimônio de admiração e apreço republicanos conquistado ao longo dos anos e consolidado quando a instituição se atreveu a ser o osso duro de roer em que o bolsonarismo autocrático findou por quebrar os dentes.

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O fato é que há muito tempo juízes da Corte se comportam como se fossem imprescindíveis intelectuais públicos, influenciadores ou celebridades da mídia.

A propensão a pontificar sobre polêmicas públicas, a compulsão por ter que "meter opinião" nas questões disputadas e nas controvérsias em aberto na sociedade, a semidivina convicção de que cada juiz carrega em seus ombros o destino político do país e que, portanto, conduzirá a nação para a felicidade a golpe de pareceres ou de declarações é definitivamente constrangedora.

A democracia e a imagem do Judiciário ficariam bem melhores se juízes do STF não fossem "arroz de festa" da "palpitologia" nacional que inunda o jornalismo e os ambientes digitais.

Não sei se realmente acham que o país precisa realmente desse serviço de babá política ou se é apenas ego, mas o fato é que há outras pessoas para fazer isso. Aliás, o que não falta ao país são intelectuais e pretendentes a isso, influenciadores e celebridades.

Ultimamente, com os festivais ultramarinos da inteligência nacional, membros da Corte passaram também a prestar os inestimáveis serviços de promoção de "think tank activities". No último desses festivais, conforme a Folha, 160 autoridades do governo, do Congresso e do Judiciário tiraram uns dias em Lisboa para, com a devida distância, entender o país. Isso faz sentido?

Um juiz do STF lapida o seu lugar na história, inclusive na história intelectual do país, sendo juiz. Segurar a autocracia pelos chifres quando nada mais parece capaz de fazê-lo, escrever pareceres e súmulas dignas de antologia sobre questões em disputa, manter uma postura republicana quando o país enlouquece politicamente.

É preciso mais do que isso para entrar na história? Tem cabimento ser ainda celebridade e fornecedor fácil de aspas para o jornalismo, torrar a grana pública em diárias e passagens nababescas, desnecessárias para o exercício do seu ofício, frequentar a elite da política e da grana em convescotes, tertúlias e festinhas VIP, ou arvorar-se como grandes intelectuais brasileiros na sua hercúlea tarefa de dirigir a mente nacional?

Republicano é um juiz da Suprema Corte brilhar no exercício do seu múnus e desaparecer na vida cotidiana do país, recoberto por modéstia e neutralidade, deixando a política ao povo e aos políticos, e os papéis de intelectual público, influenciador, celebridade e agitador cultural a quem fizer disso o seu ofício. Se os nossos juízes não compreenderem esse fato, em breve não terão moral nem mesmo para fazer o papel que lhes cabe, e pelo qual tanto os apreciamos.