quarta-feira, 3 de julho de 2024

O juiz celebridade precisa acabar, Wilson Gomes, FSP

 Sou de uma geração que, ao alcançar a idade do discernimento moral e do entendimento do mundo, achou-se sob uma ditadura militar. Uma geração que não apenas viveu boa parte da vida sob um regime ditatorial, mas cujos pais haviam experimentado duas ditaduras.

Um jovem dos anos 1980 nem sequer conseguia discernir se o país vivia sob um regime democrático frequentemente interrompido por longas ditaduras ou se saltava de ditadura em ditadura com breves intervalos democráticos. Daí o assombro de quase ver a história se repetir em 2023, quando bolsonarismo achou que já era tempo demais de recreio democrático e saiu num domingo de sol para dar um golpe como quem sai para um passeio no parque.

Para a minha geração, portanto, é impossível não reconhecer o fato de o STF ter se demonstrado uma instituição capaz de enfrentar com firmeza os arroubos ditatoriais do pretendente a tirano. Não se trata apenas da reação dura e sem hesitação à intentona de 8 de janeiro. Refiro-me, sobretudo, aos quatro longos anos em que Bolsonaro e o bolsonarismo testaram os limites da democracia, capturaram instituições, sondaram a tolerância da imprensa e, enfim, procuraram brechas na defesa do STF.

Na ilustração de Ariel Severino, o braço de um juiz, com toga preta de seda de grife, segura com sua mão o martelo de ditar sentenças.  O martelo tem a textura e visual dos famosos azulejos portugueses, a base onde bate o martelo é de cristal maciço e tem brilhos dourados provocados pelos holofotes que iluminam a cena.  Tudo se desenvolve sobre um tapete vermelho que vai de lado a lado da ilustração. O fundo é escuro para destacar os fachos dos holofotes.
Ilustração de Ariel Severino para Wilson Gomes de 3 de julho de 2024 - Ariel Severino/Folhapress

A cada investida, um rechaço, e a cada rechaço, um discurso histriônico, um vídeo histérico, uma profusão de ameaças explícitas e nominais. Não é à toa que o juiz Alexandre de Moraes estava "no caderninho" dos que precisavam ser removidos à força do caminho.

Além disso, é impossível não admirar os tantos avanços progressistas que um STF predominantemente esclarecido e convictamente democrático foi capaz de garantir em seus julgamentos na última década.

Por isso, vejo com desconforto juízes da Corte se esforçarem para jogar fora o patrimônio de admiração e apreço republicanos conquistado ao longo dos anos e consolidado quando a instituição se atreveu a ser o osso duro de roer em que o bolsonarismo autocrático findou por quebrar os dentes.

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O fato é que há muito tempo juízes da Corte se comportam como se fossem imprescindíveis intelectuais públicos, influenciadores ou celebridades da mídia.

A propensão a pontificar sobre polêmicas públicas, a compulsão por ter que "meter opinião" nas questões disputadas e nas controvérsias em aberto na sociedade, a semidivina convicção de que cada juiz carrega em seus ombros o destino político do país e que, portanto, conduzirá a nação para a felicidade a golpe de pareceres ou de declarações é definitivamente constrangedora.

A democracia e a imagem do Judiciário ficariam bem melhores se juízes do STF não fossem "arroz de festa" da "palpitologia" nacional que inunda o jornalismo e os ambientes digitais.

Não sei se realmente acham que o país precisa realmente desse serviço de babá política ou se é apenas ego, mas o fato é que há outras pessoas para fazer isso. Aliás, o que não falta ao país são intelectuais e pretendentes a isso, influenciadores e celebridades.

Ultimamente, com os festivais ultramarinos da inteligência nacional, membros da Corte passaram também a prestar os inestimáveis serviços de promoção de "think tank activities". No último desses festivais, conforme a Folha, 160 autoridades do governo, do Congresso e do Judiciário tiraram uns dias em Lisboa para, com a devida distância, entender o país. Isso faz sentido?

Um juiz do STF lapida o seu lugar na história, inclusive na história intelectual do país, sendo juiz. Segurar a autocracia pelos chifres quando nada mais parece capaz de fazê-lo, escrever pareceres e súmulas dignas de antologia sobre questões em disputa, manter uma postura republicana quando o país enlouquece politicamente.

É preciso mais do que isso para entrar na história? Tem cabimento ser ainda celebridade e fornecedor fácil de aspas para o jornalismo, torrar a grana pública em diárias e passagens nababescas, desnecessárias para o exercício do seu ofício, frequentar a elite da política e da grana em convescotes, tertúlias e festinhas VIP, ou arvorar-se como grandes intelectuais brasileiros na sua hercúlea tarefa de dirigir a mente nacional?

Republicano é um juiz da Suprema Corte brilhar no exercício do seu múnus e desaparecer na vida cotidiana do país, recoberto por modéstia e neutralidade, deixando a política ao povo e aos políticos, e os papéis de intelectual público, influenciador, celebridade e agitador cultural a quem fizer disso o seu ofício. Se os nossos juízes não compreenderem esse fato, em breve não terão moral nem mesmo para fazer o papel que lhes cabe, e pelo qual tanto os apreciamos.

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