domingo, 23 de junho de 2024

Dom Pedro 1º foi primeiro golpista do Brasil e reforçou tradição autoritária, diz livro, FSP

 Diogo Bercito

WASHINGTON

Em 1822, dom Pedro 1º declarou a independência do Brasil. O hino nacional celebra seu grito às margens do Ipiranga. Menos lembrado, porém, é o fato de que um ano depois o jovem monarca deu um golpe.

"Dom Pedro era um absolutista, um déspota", afirma o jornalista Ricardo Lessa, autor do livro "O Primeiro Golpe do Brasil". A obra será lançada nesta sexta-feira (21) no Rio e em 2 de julho em São Paulo.

Dom Pedro 1º em seu último retrato em vida, feito pelo pintor Simplício Rodrigues de Sá - Museu Imperial de Petrópolis

Lessa atuou em grandes veículos e foi apresentador do programa de entrevistas Roda Viva. Teve a ideia do livro durante sua carreira, quando se deu conta de que a política ainda continha traços do século 19.

O trabalho do jornalista, diz, é se perguntar "como chegamos aqui?". Na sua resposta, o livro volta a 1823. Foi quando, logo depois de declarar a independência, dom Pedro 1º dissolveu a Assembleia Constituinte.

O monarca também deteve deputados, exilou rivais políticos, vigiou espaços públicos e perseguiu a imprensa, mostra Lessa. O episódio, ocorrido em 12 de novembro, ficou conhecido como "noite da agonia".

Como resultado, afirma Lessa, o tal cavaleiro libertador do país entravou o progresso. Seus gestos adiaram, por exemplo, a abolição da escravidão, que era discutida à época da Constituinte e acabou adiada até 1888.

Um dos elementos centrais do livro é a crítica à monarquia brasileira. "Sempre se fala em um dom Pedro 2º sábio e em uma princesa Isabel benevolente", diz Lessa, "como se eles tivessem sido bons para o país".

O livro sugere que a família real foi, em vez disso, prejudicial. Foi por sua influência que o Brasil não acompanhou seus vizinhos e o restante do mundo em um século marcado —alhures, isso é— pelo progresso.

Lessa dá o exemplo da feira mundial realizada em Paris em 1889. A França exibiu a Torre Eiffel. A Inglaterra, os trens de ferro. Os EUA, a lâmpada, o telefone e a eletricidade. Já o Brasil levou café e tabaco.

A relação entre monarquia, escravidão e atraso foi esquecida. "Na escola, falamos de príncipes encantados", diz. Não se fala do lado perverso: o tráfico de africanos teve seu ápice em 1829, sob dom Pedro.

Para escrever o estudo, Lessa foi atrás de documentos em diversas instituições públicas, como a Biblioteca Nacional e o Arquivo Municipal do Rio de Janeiro, com a colaboração da jornalista Ruth Joffily.

O autor também escavou os trabalhos de historiadores, desde os canônicos aos mais atuais, que cita no texto. Chegou a entrevistar alguns deles, como Evaldo Cabral de Mello, o autor de "O Nome e o Sangue".

Nas últimas páginas, o jornalista incluiu dois materiais de apoio. Primeiro, uma lista de "fake news" sobre dom Pedro 1º (por exemplo, que era um liberal). Segundo, uma cronologia dos acontecimentos da época.

Lessa situa os eventos brasileiros em um panorama global. Relaciona, por exemplo, a campanha de Napoleão na Europa com a reação conservadora de monarquias, inclusive aqui, protegendo as suas regalias.

O livro é mais um ensaio que uma reportagem ou uma tese. "Não pretendo fazer nenhuma grande descoberta na história, e sim provocar uma reflexão sobre o que é essa história que estão nos vendendo", diz.

Há também uma crítica. Lessa costura de modo discreto nexos entre os séculos 19, 20 e 21, sugerindo continuidades. Cita, por exemplo, o interesse de Emílio Garrastazu Médici e Jair Bolsonaro por dom Pedro 1º.

A referência é ao fato de que Médici, que governou o país no período mais violento da ditadura (1969-1974), mandou trazer de Portugal a ossada do monarca. O ex-presidente Bolsonaro quis trazer seu coração.

O livro constrói, assim, a ideia de que o país herdou um certo modo de fazer política, cristalizado naquela noite de 1823. Seus traços mais óbvios são a corrupção, o elitismo e o autoritarismo.

"Nós vivemos em uma época de desconstrução das instituições democráticas e republicanas", afirma Lessa. "Precisamos nos livrar do molde autoritário. Mas ele retorna. Essas coisas perduram na história."

O PRIMEIRO GOLPE DO BRASIL

  • Quando Lançamento no Rio na sexta (21), às 19h, na Livraria Argumento; lançamento em São Paulo no dia 2 de julho, às 19h, na Livraria da Travessa de Pinheiros
  • Preço R$ 59 (176 págs.)
  • Autoria Ricardo Lessa
  • Editora Máquina de Livros

Celso Rocha de Barros - Ajuste de meio de governo, FSP

 A vida da equipe econômica de Lula está mais difícil. As derrotas no Congresso, os juros nos Estados Unidos e a turbulência no mercado financeiro devem obrigar a equipe econômica a antecipar, ao menos em parte, a discussão sobre gastos públicos que só pretendia fazer em 2025.

As medidas mais controversas, que ainda não sabemos se serão mesmo apresentadas, seriam a desvinculação do piso da previdência do salário-mínimo e a revisão dos mínimos constitucionais de gasto com saúde e educação.

A imagem mostra dois homens em um evento. O homem à esquerda tem cabelo grisalho e barba, e está segurando um papel. O homem à direita está cochichando algo no ouvido do homem à esquerda. Ambos estão usando terno e gravata. O fundo é amarelo e azul.
O ministro Fernando Haddad (Fazenda) conversa com o presidente Lula (PT) durante evento no Palácio do Planalto - Lucio Tavora - 20.mai.24/Xinhua

O economista Bráulio Borges, que já teve suas propostas elogiadas por Haddad, defende que o piso da previdência seja reajustado pelo índice de inflação da terceira idade (IPC3-i) calculado pela Fundação Getúlio Vargas, e que os mínimos para saúde e educação sejam substituídos por pisos de gasto per capita que poderiam subir com o tempo.

O timing político das propostas pode parecer estranho.

O ajuste real do salário-mínimo no governo Bolsonaro foi zero. Se Lula desvinculasse o piso da previdência no começo do governo, quando começou a aumentar o mínimo, ainda estaria dando mais aumento do que Bolsonaro para todo mundo.

No teto de gastos de Temer, a vinculação de gastos com saúde e educação havia sido extinta. Se Lula inserisse uma vinculação mais modesta no arcabouço fiscal, ainda estaria aumentando a obrigatoriedade do gasto com saúde e educação, em comparação com os dois últimos governos.

Fazendo o ajuste no meio do governo, a impressão será que Lula 3 desacelerará os aumentos dos aposentados (que ainda serão maiores do que antes de Lula 3) e diminuirá a obrigação de gastar com saúde e educação (que ainda vai ser maior do que antes de Lula 3).

Como bem notou Samuel Pessôa nesta Folha, esses mecanismos poderiam ter sido implementados junto com o novo arcabouço fiscal, já em 2023. O economista Bruno Carazza, em artigo recente no Valor Econômico, propôs a questão nos seguintes termos: por que Lula não seguiu o clássico conselho de Maquiavel, de fazer o mal de uma vez e o bem aos poucos? Isto é, porque Lula não propôs os ajustes no começo do governo, para colher os benefícios de crescimento (e recuperar sua popularidade) nos anos seguintes?

Na verdade, Lula 3 teve um início de governo muito atípico. O preço da impopularidade no começo de Lula 3 era muito maior do que em qualquer governo da Nova República, pois houve uma tentativa de golpe. O líder do golpe, aliás, ainda está solto e acaba de indicar o candidato a vice na chapa de Ricardo Nunes.

E havia uma questão de princípio, com a qual concordo: como bem disse Marcelo Medeiros em entrevista à Folha, qualquer proposta de ajuste pode ser discutida, mas o gasto com pobre deve ser cortado por último. Quem critica o ajuste pelo foco na arrecadação deveria lembrar do seguinte: a maioria das desonerações combatidas por Haddad —inclusive as criadas no governo Dilma— deveria ser extinta mesmo se não houvesse problema fiscal. São completamente injustificáveis e regressivas.

Resta torcer para que o ajuste de meio de governo se dê em condições mais favoráveis, tanto no ambiente externo quanto no equilíbrio político. Ajudaria se a extrema direita perdesse nas eleições municipais, nas eleições para presidência de Câmara e Senado, e na eleição americana.