domingo, 3 de março de 2024

De AdolfHitler@Reich para Lula@gov, Elio Gaspari, FSP

 Prezado senhor,

Escrevo-lhe porque vi que, depois de se meter numa briga com os judeus, o senhor se explicou dizendo que nunca falou no Holocausto. Indo-se à literalidade de suas falas, a razão está consigo. Recapitulo.

Em Adis Abeba, o senhor disse o seguinte: "O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus".

Dias depois, ao se explicar, o senhor esclareceu: "Não tentem interpretar a entrevista que eu dei. Leiam a entrevista e parem de me julgar a partir da fala do primeiro-ministro de Israel. [...] Primeiro que não disse a palavra Holocausto. Holocausto foi interpretação do primeiro-ministro de Israel. Não foi minha. A segunda coisa é a seguinte, morte é morte".

Lula, um homem branco, de cabelo e barba da mesma cor, vestido com um terno escuro, gravata e camisa branca. Ao fundo dele, sem nitidez, um avião
O presidente Lula, na base aérea da FAB, em Brasília, para receber brasileiros que estavam na Faixa de Gaza - Ueslei Marcelino - 13.nov.2023/Reuters

Senhor presidente, desse jeito, tudo se resumiu a cinco palavras: "Hitler resolveu matar os judeus". O senhor realmente acha que eu resolvi matar os judeus e disso resultou uma máquina que exterminou 6 milhões de pessoas?

Mataram-se judeus antes e depois de Hitler, mas só durante meu governo houve o que hoje se chama de Holocausto. Não há um sem o outro.

Durante todo o tempo que governei o Reich, persegui os judeus e tudo o que lhes aconteceu teve o meu estímulo e aprovação, mas lhe escrevo para esclarecer que nada do que aconteceu deveu-se apenas ao Hitler.

De novo, recapitulo, atendo-me ao período posterior à chegada dos europeus à terra que o senhor governa.

Na Páscoa de 1506, 2.000 judeus foram massacrados em Lisboa. Em 1647, foi queimado vivo no Terreiro do Paço Isaac de Castro, que havia vivido em Pernambuco e na Bahia. Em 1739, foi a vez de António José da Silva Coutinho, um judeu que nasceu no Rio e escrevia coisas para o teatro.

Aqui onde estou, convivo com vários papas, mas eles pedem que não os mencione. Eu tinha cinco anos de idade quando Edgar Degas, esse grande pintor francês, expulsou uma jovem do seu ateliê ao suspeitar que ela fosse judia.

No início do século 20, quando comecei a denunciar os judeus, não estava sozinho. O imperador da Alemanha, Guilherme 2º, vivia no exílio e dizia que, para aqueles "parasitas [...], acredito que o melhor tratamento seria o gás".

Eu, Adolf Hitler, nunca estive sozinho. Acho que os judeus devem ser expulsos da Palestina e, novamente, não estou sozinho. A guerra de Gaza prova isso.

Quando o senhor diz que resolvi matá-los, exagera. Transformar-me em bode expiatório é fácil, mas inútil. Veja o caso desse Adolf Eichmann. Ele deportou centenas de milhares de judeus para os campos de extermínio. Depois que os judeus o capturaram na Argentina, disse que não era antissemita, mas cumpria ordens minhas.

É verdade que cumpria ordens, mas veja a lista de presença na reunião que estruturou a burocracia da Solução Final, ordenada por mim. Ela se deu em Berlim, em 1942, com 15 participantes, inclusive ele. (Eu tinha mais o que fazer.)

Terminada a guerra, vim para cá e começou o despejo das responsabilidades para cima de mim. Dos 15, 2 já tinham morrido, 1 matou-se, 3 foram executados e outros 2 sumiram. Restaram 7. Todos pegaram penas leves. Um deles, depois de cumprir a pena, conseguiu um emprego público. Voltou a ser julgado e, em 1951, foi condenado a pagar uma multa de uns US$ 100 em dinheiro de hoje.

Boa sorte e Heil Hitler!

Adolf

Safatle subestima a luta das conquistas frágeis, Celso Rocha de Barros, FSP

Em entrevista à Folha, o filósofo Vladimir Safatle afirmou que "a esquerda política morreu como esquerda" e que "a extrema direita é hoje a única força política real no país". Enquanto a extrema direita manteria sua "capacidade de ruptura", a esquerda teria perdido sua capacidade de propor "igualdade dentro dos processos de produção e alguma forma de democracia direta".

A esquerda brasileira, obviamente, não morreu. Neste exato momento, Fernando Haddad briga para tornar a tributação brasileira mais progressiva, e acaba de propor no G20 a taxação global dos super-ricosMarina Silva certamente está entre as autoridades mundiais com melhor atuação contra o desmatamento e o aquecimento global. Há retrocessos conservadores em nomeações que ignoram a representatividade, e inúmeras áreas em que as resistências conservadoras impedem maiores progressos. Mas o terceiro governo Lula tem indicado mais, não menos, disposição para enfrentar brigas difíceis do que os governos petistas anteriores. Até porque não sobraram brigas fáceis.

Pessoas vestidas de vermelho com uma bandeira do Brasil
Movimentos sociais fazem manifestação na avenida Paulista para relembrar os ataques de 8/1 e exaltar defesa da democracia - Eduardo Knapp - 8.jan.2024/Folhapress

E Safatle não parece dar o valor devido à luta necessária para que a democracia, ou as políticas sociais, resistam. Não há nenhum mecanismo automático, sistêmico, que lhes garanta a sobrevivência. Se não houver uma sindicalista, um militante negro, um ambientalista ali embaixo brigando com todas as suas forças, pragmaticamente, todo dia, sem parar, tudo isso cai. Nessa luta, os reformistas enfrentam muito mais poder do que a extrema direita quando propõe sua "ruptura".

A distinção é importante, inclusive, para evitar a sedução que a extrema direita exerce sobre setores pouco esclarecidos da extrema esquerda: aquela vontadezinha de migrar do comunismo para o fascismo, pulando a social-democracia, pela sedução da coreografia da ruptura, mesmo quando encenada a favor de todo mundo que já tinha poder e dinheiro no começo da briga. É só olhar para a turma da esquerda brasileira fascinada com Vladimir Putin.

Mas Safatle está falando de um problema real: há uma assimetria de "direito ao radicalismo" entre esquerda e direita no Brasil atual. Enquanto a esquerda administra uma frente ampla, a direita "moderada" vai à Paulista aprender entusiasmo com os fascistas. Em um quadro de consolidação do sistema partidário com forte viés conservador, o risco de diluição ideológica para a esquerda é real.

Entretanto, não acho que Safatle tenha boas respostas para o problema. Por exemplo, ele recusa a ideia de "gerir a crise do capitalismo". Bom, é o que tem para gerir hoje. Não há um modelo de socialismo minimamente pronto para ser implementado sem alto risco de repetir o autoritarismo das experiências socialistas anteriores. E a crise do capitalismo pode ser administrada como New Deal ou como fascismo.

No fundo, minha discordância fundamental com Safatle parece ser esta: quando olho para a esquerda brasileira atual, não vejo tanta acomodação a um sistema. Vejo mais uma luta terrível, diária, para preservar e atualizar conquistas de décadas que quase desapareceram faz muito pouco tempo. Até agora, está dando surpreendentemente certo.

Por fim, acho honesto reconhecer que se menos de 2% dos eleitores tivesse votado diferente no segundo turno de 2022 toda a minha aposta na democracia teria dado errado.

José Henrique Mariante - Folha na tomada, FSP

 O 104° ano da Folha começou com um fato raro, o lançamento da terceira campanha institucional da empresa em um intervalo de décadas.

Há 40 anos, este jornal encampava as Diretas Já, momento fundamental da redemocratização (e também da transformação da Folha em grande veículo de imprensa). É notável, inclusive, que o estertor da ditadura, no atual estado de coisas, ainda não tenha merecido maior lembrança.

Há 5 anos, foi a vez da campanha em defesa da democracia, assombrada então pelas bravatas golpistas do bolsonarismo, amostra de como sinais antecedentes são importantes e devem ser levados em conta.

Agora é o planeta. Quer dizer, de parte dele ou de algo que o afeta, a transição energética.

Desde o dia 18 de fevereiro a Folha ostenta um logo reformado alusivo ao tema e um novo slogan temporário, "um jornal em defesa da energia limpa", no site e na versão impressa. Uma "transformação necessária, gigantesca", que torna "imprescindíveis a ação corajosa de governos e o apoio decidido da sociedade", escreveu o jornal em editorial de Primeira Página, peça de resistência da cobertura iniciada de modo ostensivo na mesma data.

Uma folha verde está ligada a uma tomada. No fio entre as duas, um nó. O fundo é branco.
Carvall/Folhapress

Uma bem-vinda priorização do tema mais importante da atualidade, o aquecimento global. Ainda que o apocalipse de Baby e o dedo nervoso de Vladimir Putin chamem a atenção, o que apavora ou deveria estar apavorando são os termômetros subindo, tragédias "naturais", aspas obrigatórias, de toda sorte e coisas esquisitas, como queimadas em Roraima e, ao mesmo tempo, enchentes no Acre. Uma desordem cada vez mais frequente, que se traduz também em pestilências, como a dengue. E a epidemia é só o desafio da vez. Outros virão, pois a crise climática é transversal, e assim deveria ser sua cobertura jornalística.

Apesar de abrangente, a opção da Folha pela transição energética guarda algumas questões que podem se tornar indigestas se mal combinadas. Por exemplo, pelo começo, o que é exatamente energia limpa. Seria a completa descarbonização do processo produtivo? Ótimo. Ou o termo estará sujeito ao conceito elástico de transição? É mais do que semântica, mostrou a COP28, em que os negociadores sauditas emplacaram "transição" no lugar de "eliminação" gradual da exploração mundial de petróleo em troca de uma obviedade, a admissão de que esse fim é um imperativo.

No Brasil, a coisa não é menos cinzenta. O ministro de Minas e Energia acha que explorar petróleo na Foz do Amazonas faz parte do processo. E o Congresso, volta e meia, flerta com ideias e prazos de validade vencidos ou perto de vencer, como carvão e gasodutos.

Vê-se que é preciso elevar o debate, o que o jornal mostra estar disposto após o advento de novos colunistas e a realização de um seminário com especialistas. Todos, sem exceção, vozes do mercado e do governo, é forçoso notar. Ninguém da academia, ninguém da área ambiental, diversidade que certamente enriqueceria a conversa e traria, naturalmente, limites mais rígidos para o conceito de transição.

Não que a Folha precise se obrigar ao ativismo por estar em campanha (e a despeito de ter tido seu maior sucesso na campanha em que foi mais ativista), mas a escolha pelo foco fechado em energia a deixa suscetível. Se por aqui pouco incomoda o fato de o novo colunista comandar uma empresa que é metade da Shell, o dragão que processa ambientalistas na Europa, uma iniciativa incoerente com o respeitado histórico do jornal na cobertura de ambiente e Amazônia pode ser danosa.

Os primeiros sinais são auspiciosos. Duas semanas de leituras interessantes: dos dilemas tributários das montadoras à obsolescência das hidrelétricas, da absoluta falta de plano para redução de combustíveis fósseis à grande falácia da reciclagem do plástico.

Um pouco de radicalismo, como aquele de há 40 anos, é claro, não faria mal a ninguém, muito menos ao planeta.

TAMBÉM MORRE QUEM ATIRA

O conflito em Gaza produz novo capítulo dramático. Para quem está contando títulos a favor ou contra este ou aquele lado, e tem muita gente fazendo isso, é importante observar que a Folha foi um dos poucos jornais do mundo a manchetar Israel como sujeito da ação de quinta-feira (29). The Wall Street Journal e Financial Times seguiram trilha parecida. The New York Times pôs Israel apenas no subtítulo de sua capa, ainda que a abertura do texto implicasse diretamente os militares do país.

Outro item chocante do episódio são as imagens do tumulto feitas por drone israelense. Estratégia de divulgação, tema já debatido pela coluna, com resultado ainda mais incerto desta vez. Captada à distância, sem luz, sem cor, a cena parece desumanizar o ocorrido, bem observa uma colega. Não culpa nem absolve, apenas escancara o horror, como se ele já não fosse evidente.