sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

O bem-vindo estelionato eleitoral de Javier Milei, André Roncaglia, FSP

 A realidade se impôs a Javier Milei mais rapidamente do que se esperava. Essencialmente, a equipe econômica e o plano de estabilização anunciados até aqui são aqueles da candidata derrotada nas urnas, Patricia Bullrich. Até o choque de confiança sobre o qual parece repousar a chance de sucesso do governo Milei depende do aval de Mauricio Macri.

Milei parece ter abandonado a ideia de pronta dolarização da economia —quiçá para sempre— e estendeu o prazo de estabilização para 18 a 24 meses, sinalizando maior gradualismo. A promessa de cortar gastos em 15% do PIB já fez brilhar os olhos do FMI, que negocia uma linha de liquidez para o país.

A rota Macri 2.0 se desenha, sem o aval das urnas, a partir da indicação de Luis Caputo para o Ministério da Economia e —ainda mais significativa— da rejeição de Emilio Ocampo para presidir o Banco Central argentino. Ocampo formulou a proposta de dolarização, à qual Caputo se opõe.

Luis Caputo, futuro ministro da Economia de Javier Milei - Eitan Abramovich/AFP

A dolarização sozinha elimina o que parece ser o inimigo central de Milei: a política monetária. Mesmo assim, ele não abre mão de fechar o Banco Central. Parece hipnotizado pela fantasia libertária de que a autoridade monetária não passa de uma "agência soviética de planificação" que emite moeda para financiar os déficits fiscais.

Contudo, o Banco Central tem outras funções: supervisiona o sistema financeiro, garante sua estabilidade, monitora o sistema de pagamentos, controla a liquidez e o crédito da economia, identifica e combate crimes financeiros, entre outras funções. Logo, extinguir a instituição tem valor simbólico apenas: as funções serão distribuídas entre outras agências do governo, com potencial falta de coordenação entre elas.

Sede do Banco Central da Argentina, em Buenos Aires - Juan Mabromata/AFP

O efeito prático da dolarização é impor uma disciplina externa à política fiscal, na medida em que o governo só poderá se endividar em dólares. Sem a possibilidade de desvalorizar a moeda para promover competitividade das exportações, o país dependerá de sua capacidade de incrementar a produtividade (relativamente à dos EUA), da ocorrência de booms de commodities que elevem as receitas de exportações e de ciclos de desvalorizações do dólar no mercado internacional.

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Ignorando que a dolarização tende a aprofundar vantagens comparativas estáticas (agropecuária e minérios), a estabilidade macroeconômica passa a depender do fluxo de capital estrangeiro. A mesma taxa de juros elevada que atrai os dólares sobrecarrega o serviço de juros —em dólar— da dívida pública. As políticas fiscal e monetária ficam expostas a choques externos adversos e aos ciclos internacionais de liquidez, retraindo a economia em cenários como o atual, em que o Fed executa uma política monetária contracionista. A economia se torna uma máquina de volatilidade turbinada.

Artigo de Iván Werning e coautores ("Dollarization Dynamics", 2023) mostra que a dolarização implica uma "parada súbita": o consumo cai, a taxa de câmbio real deprecia-se abruptamente por uma queda imediata dos preços internos e dos salários, seguida por uma apreciação cambial gradual. A economia entra numa recessão. O custo social da dolarização é imediato e sua acomodação posterior, incerta.

As experiências de dolarização de Equador e El Salvador mostram que a aparente estabilidade oculta uma instabilidade que pode se realizar em pressão sobre a taxa de câmbio real e/ou em convulsão social. A conta fecha com a exportação de profissionais qualificados, o avanço do crime organizado e o encarceramento em massa.

Uma crise na segunda maior economia da região pode desarrumar bastante o frágil arranjo que é o Mercosul. Dado o radicalismo histriônico e lunático de Milei durante a campanha, o estelionato eleitoral, se efetivado, será boa notícia para a Argentina e para a região.

Nem a ditadura foi tão ambiciosa quanto o STF ao decidir sobre entrevistas, Luís Francisco Carvalho Filho, FSP

A decisão que permite a responsabilização civil de empresas jornalísticas pela fala de pessoa entrevistada é um desatino que pode nos remeter para tempos obscurantistas.

Supremo Tribunal Federal protegia a liberdade de expressão, sempre ameaçada por governantes e agentes públicos, que adoram jornalismo subserviente, pelego. Mudou. Agora, o STF pretende estabelecer um regime político de intangibilidade da honra de personalidades e políticos, inclusive corruptos e pilantras.

Nem a ditadura foi tão ambiciosa.

Segundo o tribunal, a imprensa tem o dever de verificar a veracidade dos fatos antes e se há "indícios concretos" de falsidade na acusação proferida pelo entrevistado. É a inversão absoluta de valores. Quer fazer do jornalismo uma instância cartorial, burocrática.

Sede do Supremo Tribunal Federal, em Brasília - Pedro Ladeira - 31.jan.23/Folhapress

A decisão é também idiota: o princípio não tem aplicação viável quando se trata de entrevista ao vivo, a não ser que estabelecesse a obrigação de algum mecanismo preventivo ou simultâneo de censura.

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De quebra, em mais uma escorregadela tirânica, aparentemente sugerida pelo ministro Cristiano Zanin, o STF salienta que a Justiça pode determinar a remoção de conteúdo com "informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas". É de causar inveja aos "juristas" do regime militar.

Vejamos um exemplo curioso. Se o ministro Gilmar Mendes repetir hoje para um repórter o que disse em 2015, que o PT instalou no país "um modelo de governança corrupta", algo que mereceria o nome de "cleptocracia", o órgão de imprensa poderia ser responsabilizado civilmente, muito embora o ministro tenha capacidade financeira e idoneidade moral para responder por seus atos e opiniões.

Diante da repercussão negativa, o novo presidente do STF, Luís Roberto Barroso, que inaugura seu mandato com esse monstrengo jurisprudencial, tenta acalmar o ambiente e defender o indefensável, afirmando que a decisão de quarta-feira só afeta casos de "negligência grosseira". Não é verdade.

A tese da repercussão geral formulada não menciona a tal "negligência grosseira". O portal do STF prevê a aplicação do novo princípio em pelo menos 119 casos que aguardam a manifestação preguiçosa e temerária do tribunal.

Além de incentivar a autocensura e de sugerir a existência de limites para o direito de crítica, contrariando entendimentos liberais anteriores do próprio tribunal, quando agia como guardião da liberdade de expressão, o STF de hoje, mais mesquinho, estimula o "juiz da esquina" a punir veículo de comunicação que não "verificar a veracidade dos fatos" antes da publicação da entrevista.

Os pequenos e médios veículos de comunicação serão vítimas da Justiça local, muitas vezes exercida por magistrados corporativistas e autoritários.

Se a tese da repercussão geral prevalecer mesmo, tal como está formulada em tira de julgamento (o acórdão ainda será redigido), este princípio bizarro da verificação da veracidade dos fatos pelo veículo de comunicação pode se consolidar e se estender para outras situações jornalísticas, criando embaraços para o jornalismo investigativo, que tanto incomoda governantes e pilantras. 

Atiraram no pianista - Ruy Castro, FSP

 


Foi coincidência. Aconteceu de, na outra semana, eu assistir ao filme "Atiraram no Pianista", dos espanhóis Fernando Trueba e Javier Mariscal, sobre o desaparecimento do pianista brasileiro Tenório Jr. em Buenos Aires durante a ditadura argentina, e, dias depois, estar na mesma Buenos Aires, diante do Hotel Normandie, de que Tenorio saiu em 1976 para nunca mais ser visto. Tenório foi um dos grandes talentos do samba-jazz, a melhor música instrumental do mundo em meados dos anos 1960. Dez anos depois, quando ele desapareceu, essa música já fora destruída pelas gravadoras e Tenório se tornado coadjuvante de Vinicius de Moraes e Toquinho em turnê pela Argentina.

O Hotel Normandie, onde o grupo se hospedou, fica na Rodriguez Peña, quase esquina de Corrientes. Na noite de 18 de março, o alto, barbudo e apolítico Tenório teria saído (para comprar cigarros ou um sanduíche ou um remédio) e sido confundido com um terrorista local pelos agentes militares. Levado para um centro de tortura, foi tão machucado que, ao se constatar o engano, já não era possível devolvê-lo. O jeito era matá-lo —e, tudo indica, com a conivência de funcionários da embaixada brasileira, fiéis à nossa própria ditadura. Tenório tinha 34 anos.

Em 2011, o Normandie afixou uma placa na fachada em homenagem a Tenório. Ao notar que ela não estava lá, fui perguntar na recepção. Disseram-me que fora arrancada, quebrada e deixada em cacos na calçada. Eles haviam recolhido os cacos e guardado no depósito. Quem teria feito isto? Não sabiam. Mas não parecia simples vandalismo. Cheirava mais a um ato de ódio —e Buenos Aires está cheia de brasileiros praticantes desse ódio.

Fachada do Hotel Normandie, em Buenos Aires, com a marca da placa em homenagem a Tenório Jr. arrancada
Fachada do Hotel Normandie, em Buenos Aires, com a marca da placa em homenagem a Tenório Jr. arrancada - Heloisa Seixas

Trueba acertou ao fazer um filme de animação, com a incrível reconstituição dos cenários por Mariscal. Mas a história que ele conta é apenas a oficial.

Que, como se sabe hoje, ainda está cheia de perguntas sem respostas.