A realidade se impôs a Javier Milei mais rapidamente do que se esperava. Essencialmente, a equipe econômica e o plano de estabilização anunciados até aqui são aqueles da candidata derrotada nas urnas, Patricia Bullrich. Até o choque de confiança sobre o qual parece repousar a chance de sucesso do governo Milei depende do aval de Mauricio Macri.
Milei parece ter abandonado a ideia de pronta dolarização da economia —quiçá para sempre— e estendeu o prazo de estabilização para 18 a 24 meses, sinalizando maior gradualismo. A promessa de cortar gastos em 15% do PIB já fez brilhar os olhos do FMI, que negocia uma linha de liquidez para o país.
A rota Macri 2.0 se desenha, sem o aval das urnas, a partir da indicação de Luis Caputo para o Ministério da Economia e —ainda mais significativa— da rejeição de Emilio Ocampo para presidir o Banco Central argentino. Ocampo formulou a proposta de dolarização, à qual Caputo se opõe.
A dolarização sozinha elimina o que parece ser o inimigo central de Milei: a política monetária. Mesmo assim, ele não abre mão de fechar o Banco Central. Parece hipnotizado pela fantasia libertária de que a autoridade monetária não passa de uma "agência soviética de planificação" que emite moeda para financiar os déficits fiscais.
Contudo, o Banco Central tem outras funções: supervisiona o sistema financeiro, garante sua estabilidade, monitora o sistema de pagamentos, controla a liquidez e o crédito da economia, identifica e combate crimes financeiros, entre outras funções. Logo, extinguir a instituição tem valor simbólico apenas: as funções serão distribuídas entre outras agências do governo, com potencial falta de coordenação entre elas.
O efeito prático da dolarização é impor uma disciplina externa à política fiscal, na medida em que o governo só poderá se endividar em dólares. Sem a possibilidade de desvalorizar a moeda para promover competitividade das exportações, o país dependerá de sua capacidade de incrementar a produtividade (relativamente à dos EUA), da ocorrência de booms de commodities que elevem as receitas de exportações e de ciclos de desvalorizações do dólar no mercado internacional.
Ignorando que a dolarização tende a aprofundar vantagens comparativas estáticas (agropecuária e minérios), a estabilidade macroeconômica passa a depender do fluxo de capital estrangeiro. A mesma taxa de juros elevada que atrai os dólares sobrecarrega o serviço de juros —em dólar— da dívida pública. As políticas fiscal e monetária ficam expostas a choques externos adversos e aos ciclos internacionais de liquidez, retraindo a economia em cenários como o atual, em que o Fed executa uma política monetária contracionista. A economia se torna uma máquina de volatilidade turbinada.
Artigo de Iván Werning e coautores ("Dollarization Dynamics", 2023) mostra que a dolarização implica uma "parada súbita": o consumo cai, a taxa de câmbio real deprecia-se abruptamente por uma queda imediata dos preços internos e dos salários, seguida por uma apreciação cambial gradual. A economia entra numa recessão. O custo social da dolarização é imediato e sua acomodação posterior, incerta.
As experiências de dolarização de Equador e El Salvador mostram que a aparente estabilidade oculta uma instabilidade que pode se realizar em pressão sobre a taxa de câmbio real e/ou em convulsão social. A conta fecha com a exportação de profissionais qualificados, o avanço do crime organizado e o encarceramento em massa.
Uma crise na segunda maior economia da região pode desarrumar bastante o frágil arranjo que é o Mercosul. Dado o radicalismo histriônico e lunático de Milei durante a campanha, o estelionato eleitoral, se efetivado, será boa notícia para a Argentina e para a região.
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