segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Para a escritora Dara Horn, as pessoas só gostam de judeus mortos, João Pereira Coutinho ,FSP

 Da última vez que estive em Amsterdã, tentei visitar a casa-museu de Anne Frank. Não consegui. Os bilhetes estavam esgotados para os próximos meses. Leu bem, leitor. Meses.

Segundo parece, o último refúgio da adolescente judia recebe mais de 1 milhão de visitantes todos os anos. A culpa é do diário, que já vendeu dezenas de milhões de exemplares em todo mundo.

Mas a escritora Dara Horn, no seu perturbante "People Love Dead Jews" ("as pessoas amam judeus mortos"), conta uma história exemplar: anos atrás, um funcionário do museu tentou usar o seu quipá no trabalho.

A direção foi contra e recomendou que ele usasse o adereço debaixo de um boné de beisebol. Por uma questão de "neutralidade".

Tem a sua piada: os guardiões da memória de Anne Frank ordenando a um judeu que voltasse a esconder o seu judaísmo.

Provavelmente, alguém não gostou da piada e, após quatro meses de debate interno, o uso do quipá foi permitido.

São episódios como esse que levam Dara Horn a formular a sua hipótese: as pessoas gostam de judeus, sim, mas apenas se eles já estiverem mortos.

Aliás, para testar a sua hipótese, a escritora pede-nos para imaginarmos uma Anne Frank que, milagrosamente, sobrevivera ao Holocausto.

E que, em plena velhice, estaria disposta a partilhar com o mundo as suas experiências em Auschwitz ou Bergen-Belsen. Haveria quem a escutasse, sem dúvida.

Mas 1 milhão de pessoas todos os anos? Bilhetes esgotados durante meses?

O fascínio com Anne Frank explica-se pelo seu precoce desaparecimento. Mas também pela mensagem "inspiradora" que ela deixou no seu diário: a crença de que a humanidade é essencialmente boa, apesar de ter sido essencialmente má para com ela.

Por outras palavras: gostamos de Anne Frank, acusa Dara Horn, porque ela nos absolve de qualquer responsabilidade.

O mesmo acontece com Elie Wiesel: antes de publicar "A Noite", essa meditação teológica sobre o silêncio e o abandono de Deus ante a tragédia do Holocausto, Wiesel tinha já publicado uma primeira versão da obra em ídiche.

Em "E o Mundo Ficou em Silêncio", a responsabilidade pelos crimes era atribuída a entidades mais terrenas, como os vizinhos, os colaboradores, os nazistas. Enfim, eu e você. O sucesso só aconteceu com "A Noite".

No fundo, gostamos de obras sobre o Holocausto, desde que elas tenham uma mensagem "positiva". Essa é a razão, acrescento eu, pela qual as massas adoraram "A Vida É Bela", de Roberto Benigni, e não "Filho de Saul", a obra-prima de László Nemes.

Claro que a hipótese de Dara Horn –as pessoas só gostam de judeus mortos e bondosos– também conhece suas exceções. Os judeus podem estar vivos, desde que sejam gênios, admite ela.

Que o diga o jornalista Varian Fry, que em 1940 e 1941 partiu para Marselha com o fino propósito de salvar a "civilização europeia". Como? Ajudando na fuga de centenas de escritores, artistas ou cientistas perseguidos pelos nazistas.

De Hanna Arendt a Marcel Duchamp, de Max Ernst a Claude Lévi-Strauss, de André Breton a Marc Chagall, a lista é longa.

Mas não será também uma forma elitista de eugenia intelectual? Salvemos os gênios, deixemos os outros para trás?

Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 6.nov.23 - Angelo Abu

A pergunta acabaria por perseguir Varian Fry até o fim dos seus dias.

Ler Dara Horn seria sempre uma experiência perturbante. Mas ela é especialmente perturbante quando a Europa volta a mergulhar no ódio antissemita com uma fúria assustadora: estrelas de Davi pichadas nos prédios, ataques a lojas, agressões a judeus na rua, uma mulher esfaqueada em Lyon e a suástica pintada na porta de sua casa.

Dizem que o motivo é a guerra em curso entre Israel e o Hamas. Motivo ou pretexto?

Obviamente, pretexto: o antissemitismo começou logo a borbulhar com as primeiras notícias dos massacres... em Israel.

George Orwell explica essa dissonância cognitiva muito bem. Em 1945, quando os ingleses viram as primeiras imagens do Holocausto, Orwell lembrava uma simpática dona de casa que reagiu assim: "Por favor, não me mostre essas fotos, elas só me fazem odiar os judeus ainda mais".

Os ataques em curso não são contra "sionistas", votantes de Netanyahu, fanáticos religiosos que apoiam os assentamentos ilegais ou genocidas antipalestinos. São ataques contra judeus só pelo fato de serem judeus.

Mas não há que desesperar: se a escalada antissemita continuar rumo ao impensável, tenho a certeza de que um dia estaremos visitando as casas agora atacadas. Os proprietários só precisam de nos deixar mensagens "positivas" e "inspiradoras" sobre a beleza da bondade humana.

Joel Pinheiro da Fonseca - O Enem é ideológico?, FSP

 Sinais de que o ano se aproxima do fim: decoração de Natal nas lojas e discussões sobre a "ideologia" no Enem. Desta vez não foi diferente: a bancada do agro já pediu que o MEC anule três questões da prova, por terem "cunho ideológico".

Nos anos anteriores, a preocupação com a "ideologia" (fantasma que ninguém define direito) na prova se centrava em temas de sexualidade —lembremos da pergunta sobre o dialeto LGBT, em 2018, que fez tremer a família brasileira— e da ditadura militar, que chegou a ser banida da prova.

No campo da sexualidade, este Enem não ousou. Já a ditadura voltou a figurar, como deve ser. Ideológica era a decisão de censurar menção a um período importante de nossa história recente.

Estudantes aguardam abertura de portão da Unip (Universidade Paulista) na Aclimação, em São Paulo; Enem é uma das principais portas de entrada no ensino superior
Estudantes aguardam abertura de portão da Unip (Universidade Paulista) na Aclimação, em São Paulo; Enem é uma das principais portas de entrada no ensino superior - Zanone Fraissat - 5.nov.23/Folhapress

Há boa variedade de temas, inclusive vários que destoam de opções ideológicas simplórias: a opressão de mulheres afegãs com a volta do Taleban, a política da China para esmagar minorias étnicas, o imperialismo dos incas, a devoção popular da Cavalgada de Santana. A questão 71, uma das três que revoltou a bancada do agro, é uma das mais interessantes: apresenta dois pontos de vista opostos —um otimista, um pessimista— sobre a nova corrida espacial protagonizada pelos super-ricos. O que há de ruim nisso?

Uma das outras perguntas (70) que incomodou o agro fala do desmatamento na Amazônia, mas com uma nuance importante: diz que a soja não é responsável por ele. Discutir o desmatamento já é "ideologia"? Sobra a questão 89, que realmente traz uma visão bastante negativa do agronegócio moderno, embora isso venha como a opinião de um autor a ser lida e interpretada pelo estudante, e não como a afirmação de um fato.

Na seleção de autores, aí sim, ficam claras as preferências ideológicas do Enem: Sartre, Foucault, Merleau-Ponty, Paulo Freire, Milton Santos. São autores de referência, e não há nada a se objetar em sua inclusão, mas falta diversidade. Em particular, faltam vozes mais à direita. A prova quase nada afirma sobre a realidade; fora uma ou outra questão, temos só leitura e interpretação de textos.

Sendo assim, o mosaico de textos deveria abarcar a diversidade ideológica da produção intelectual do país e do mundo, algo que só virá se nossa academia passar a valorizar o debate de ideias, e não a mera reprodução das mesmas referências.

O Enem me fez lembrar da minha passagem pela academia brasileira, na graduação e mestrado em filosofia. O estudante não é, em nenhum momento, chamado a se posicionar. É-lhe pedido apenas que interprete diferentes autores. O acadêmico brasileiro se esconde atrás das citações, deixando ver suas preferências apenas na escolha dos comentadores que citará. É o mesmo espírito do Enem.

E aí mora o maior problema: toda essa sofisticação na leitura de textos acaba impedindo a referência à realidade, sem a qual nada daquilo faz sentido. O que costuma ser visto como um mérito da prova —não demandar "decoreba"— é uma fraqueza. Ela exclui mais do que inclui. A leitura dos textos é difícil. As respostas são ambíguas. Não raro, mais de uma se encaixa. Caetano Veloso, que tem duas músicas citadas numa questão, disse que não conseguiria responder. Para ele, todas as alternativas estão certas.

O que será mais democrático: lançar o estudante num mar de textos, alguns com palavras difíceis e temas de que ele nunca ouviu falar, ou cobrar um pouco menos disso e um pouco mais de datas e fatos importantes da nossa história e do nosso presente? Se ele não sabe quem foi Tiradentes ou quando começou a ditadura, qual a chance de que consiga ler e interpretar Foucault?

Lula no beco do crime, Alvaro Costa e SIlva, FSP

 Durante a Eco-92, reunião com chefes de Estado e representantes de 179 países para discutir a preservação ambiental, ganhou força uma expressão que ao longo do tempo se transformou em clichê: sensação de segurança. O símbolo eram três blindados, com metralhadoras e lança-morteiros, que ficaram 12 dias apontando para a favela da Rocinha.


Vinte e cinco mil policiais civis, militares e federais e agentes das Forças Armadas vigiaram a conferência como se o Rio —que passou por uma cirurgia estética removendo mendigos das ruas— estivesse sitiado à espera da guerra. Os registros de violência caíram 37% nas zonas sul e central. No restante da cidade, os altos índices de criminalidade não se alteraram. Uma sensação de segurança localizada, temporária e falsa. Na mesma época da Cúpula da Terra, o ovo da serpente miliciana era chocado na zona oeste.

De lá para cá, as intervenções também se tornaram lugar-comum. Do Plano Nacional de Segurança Pública, lançado em 2000 por FHC, às sucessivas experiências de GLO (Garantia da Lei e da Ordem). Nenhuma deu resultado, notadamente a que Temer inventou em 2018 para fazer o impossível: salvar sua popularidade. De lambuja, a Polícia Federal vê desvios na gestão do general Braga Netto —contratos para compra de blindados por R$ 17,5 milhões que nem sequer foram usados.

Apesar da desconfiança em relação às Forças Armas —uma parte delas aderiu aos planos bolsonaristas de golpe—, Lula tem agora uma GLO para chamar de sua. Além do policiamento em portos, aeroportos e rodovias, a ideia é sufocar milicianos e traficantes onde lhes doem: no bolso. A ver. Não se pode desprezar, contudo, a sustentação desses grupos pelo poder político.

Lula está num beco estreito. Sabe que os adversários vão investir nos debates sobre criminalidade, repisando a tese de que governos de esquerda não conseguem ou não têm projetos para a área.

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Policial Militar em morro em frente à favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, em 1988 - Homero Sérgio - 29.mai.88/Folhapress