domingo, 5 de novembro de 2023

Hélio Schwartsman- Boas intenções, FSP

 Numa tentativa de generalizar as ideias de Darwin para a economia e a sociologia, Herbert Spencer cunhou a expressão "survival of the fittest" (sobrevivência dos mais aptos), que se tornou o lema do darwinismo social. Nunca houve muita base científica para esse movimento, mais bem descrito como uma ideologia que buscava legitimar diferenças sociais e raciais. Nos últimos anos, porém, vêm ganhando corpo hipóteses que afirmam o exato oposto do darwinismo social —e elas parecem estar calcadas em ciência de boa cepa. Para essa corrente, foi a cooperação e não a competição que deu o tom da evolução humana (e da canina e da dos bonobos).

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 5 de novembro de 2023, mostra dois homens de Neandertal, usando peles e segurando lanças de pedra lascada e ossos de animais, que estão amistosamente abraçados
Ilustração Annette Schwartsman

"Survival of the Friendliest" (sobrevivência dos mais amigáveis), de Brian Hare e Vanessa Woods, é um ótimo livro que tenta demonstrar essa tese. O casal sustenta que o principal diferencial entre o Homo sapiens e outros hominínios que acabaram extintos foram a intencionalidade comunicativa e a atenção conjunta. Elas nos tornaram mais inventivos (melhores armas) e mais cooperativos, permitindo que vivêssemos em comunidades maiores do que as de algumas dezenas de membros de uma mesma família, que era provavelmente o tamanho dos grupos de neandertais.

A chave para a melhor comunicação foi, segundo Hare e Woods, a autodomesticação. É aí que o casal nos guia num fascinante passeio pela interface entre biologia e dinâmicas sociais em espécies tão distintas quanto humanos, cães e bonobos, à luz principalmente do célebre experimento de Dmitri Belyaev, que transformou raposas selvagens em animais dóceis e cooperativos. O segredo? Selecionar pela docilidade, o que produz uma cascata de características biológicas, incluindo a intencionalidade comunicativa e a atenção conjunta.

Ao contrário de outros primatas como o chimpanzé, humanos conseguimos ler não só as más intenções de nossos semelhantes mas também as boas. E isso faz toda a diferença.

Fósseis e mais fósseis, Editorial FSP

Rostos humanos esculpidos em pedra
Registros rupestres encontrados em Urucará (AM) - Estanislau Mendes Marinho Junior

As mudanças climáticas produzem cada vez mais evidências de sua realidade, pondo por terra questionamentos. A maioria delas envolve danos para o ambiente e populações, mas em poucos casos —como os da arqueologia e da paleontologia— podem trazer bônus.

Considere-se o aflorar de gravuras rupestres antes submersas em rios amazônicos. Não fosse a seca extrema que transformou rios caudalosos como o Negro e o Solimões em bancos de areia, a ciência teria pouca chance de reconstituir algo desses povos que ocuparam a região há milhares de anos.

Verdade que as gravações em rocha reveladas pelo recuo das águas em Ponta das Lajes, Manaus, já haviam aparecido na estiagem de 2010. Não foi esse o caso, porém, das inscrições surgidas em Urucará, quando o rio Uatumã baixou.

Em Anamã (AM), o sítio Costa da Goiabeira deu à luz urnas funerárias. Perto de Tabatinga, na fronteira com Peru e Colômbia, ruínas do forte português São Francisco Xavier, do século 18, foram desnudadas pelo Solimões esquálido.

Não há motivo para quase nenhuma comemoração. O ganho de conhecimento empalidece diante da tragédia que o fenômeno acarreta para ribeirinhos, que dependem do rio e da fauna que o habita.

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No campo da investigação acadêmica do passado humano e biológico, de todo modo, cabe algum regozijo com a dádiva duvidosa do aquecimento global. Não só no Brasil, nem apenas para a arqueologia, mas também a paleontologia.

A primeira disciplina estuda vestígios de sociedades e já se beneficia com o derretimento de geleiras, por exemplo, desde 1991. Naquele ano, encontraram-se nos Alpes os bem preservados restos mortais de um homem que ali vivera 5.600 anos antes, apelidado Ötzi.

Na Escandinávia, o gelo castigado pelo aquecimento vem fornecendo armas, trenós e roupas do Império Romano e da Idade Média.

Paleontólogos também são agraciados com fósseis surgidos a partir do derretimento de geleiras do permafrost (solo congelado) —como o filhote de mamute mumificado descoberto no Canadá.

São benesses isoladas da portentosa perturbação do clima global produzida pela queima de combustíveis —note-se a ironia— fósseis. Sem medidas efetivas para arrefecer o aquecimento, talvez arqueólogos e paleontólogos um dia escavarão os vestígios da civilização planetária que erodiu as bases de sua própria manutenção.

editoriais@grupofolha.com.br

 

sábado, 4 de novembro de 2023

Uma necessária dose de ousadia .MEIO

 Por Christian Lynch

Há cerca de oito semanas, chamei aqui a atenção para o fato de que Lula III se apresenta como um governo de “restauração”. Claro que, por essa expressão, deve se entender a restauração de um governo normal, democrático, comprometido com a observância dos princípios da Constituição e seus objetivos: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Mas por “restauração” quero dizer também que Lula III pretende recomeçar onde terminou Lula II. Há uma tendência a colocar entre parênteses, sob o signo da reprovação, toda a “revolução conservadora” da década passada, desde as jornadas de 2013 até a presidência Bolsonaro, passando pela Lava Jato, o impeachment de Dilma e o governo Temer. A nostalgia de “recolocar as coisas no lugar”, que aparentemente é a de remontar a 2013, no fundo é a de remontar a 2010, ano em que Lula passou a faixa no apogeu da popularidade e o Brasil experimentava uma euforia digna dos “anos dourados”.

Em outras palavras: o espírito de restauração passa pelo intuito de começar Lula III reatando com Lula II.

Depois de dez anos de instabilidade, marcada por trágicas experiências oligárquicas e reacionárias, o espírito de restauração é bem-vindo.

O primeiro impulso que sucede ao grande trauma é o de reatar com a vida do ponto imediatamente anterior. Impulso reforçado quando o próprio presidente, depois de dois mandatos bem-sucedidos, foi perseguido e gramou um ano e meio na prisão, alimentando ainda mais o anseio pela “restauração”. É mais que desejável, igualmente, a restauração de políticas públicas que se revelaram acertadas no campo social.

O espírito de restauração também traz perigos. O maior deles, sem dúvida, é se deixar levar por um espírito de rotina que, se nos leva a repetir velhos acertos, também nos leva a repetir velhos erros, ou nos deixa desarmado diante de dificuldades novas. Não se pode esquecer do quanto mudou a sociedade brasileira durante a última década, cuja instabilidade e reacionarismo não podem ser exclusivamente creditados à ação de agentes malévolos. A prudência recomenda adaptação às novas circunstâncias, evitando o padrão de conservadorismo quase estúpido dos restauradores referidos por Talleyrand como aqueles que “não esqueceram de nada, nem aprenderam nada”.

Estou longe de crer que este seja o caso de Lula III, que tem revelado no geral o ânimo de se adaptar conforme as dificuldades se apresentam. Mesmo assim, muito poderia ser dito aqui a respeito dos choques de realidade sofridos pelo espírito restaurador do governo, como a impossibilidade de avançar em pautas progressistas para além do âmbito administrativo e as dificuldades de formar maioria no Congresso Nacional. A reportagem de Luciana Lima publicado sábado passado aqui no Meio informa que no primeiro ano de Lula I o governo aprovou 54 medidas provisórias e não perdeu nenhuma, ao passo que Lula III expediu menos da metade, aprovou apenas sete e teve 17 caducas por falta de exame. O presidente pode ser o mesmo, mas o Congresso definitivamente não é.

O maior desafio para o espírito restauracionista de Lula III, porém, é a segurança pública. A batata, que já assava por conta da violência na Bahia, queimou depois da execução à beira-mar de turistas paulistas por traficantes de drogas no Rio, terminando de virar carvão depois que a milícia paralisou a zona oeste da antiga capital federal, queimando 35 ônibus. De acordo com matéria publicada no g1 a 13 de setembro do ano passado, a máfia policial do estado expandiu quatro vezes seu domínio territorial em 17 anos (duas vezes o tamanho de Niterói). Ao mesmo tempo, mais de dois milhões de fluminenses vivem sob o jugo do Comando Vermelho.

Aqui o espírito de restauração de nada serve na orientação de Lula III. O problema da segurança não tem como ser resolvido pela replicação de fórmulas anteriores, porque nenhum governo federal adotou nenhuma.

Ao contrário, procuraram dele sempre e desembaraçar, alegando se tratar de atribuição dos Estados, ou promovendo intervenções inócuas. Durante o breve governo Temer, é verdade, criou-se o SUSP (Sistema Único de Segurança Pública). Mas, ao invés de desenvolvê-lo, o golpismo amador e aventureiro de Bolsonaro preferiu como política partidarizar as forças de repressão, distribuir armas a esmo e incentivar a expansão da máfia policial.

A primeira obrigação de todo Estado sempre foi a garantia da segurança pública por meio do monopólio exclusivo do uso da violência legítima. Nosso maior perigo hoje é a mexicanização, ou seja, a perda definitiva do controle do território para facções que impõem a ditadura do achaque e do terror. É o que está ocorrendo, por conta de uma inação dos governos federais, baseada em cálculos de custos eleitorais e, no caso particular da esquerda, no clichê de que o tema da segurança é coisa de reacionário. Cumpre dar o quanto antes carne ao SUSP e aos poucos criar mecanismos práticos de centralização indireta da segurança, ao exemplo do que se fez nas últimas décadas com o SUS e com a administração judiciária.

A resolução deste problema, como outros, também exigirá mais criatividade e ousadia. O respeito aos princípios gerais e objetivos da Constituição, bem como às suas cláusulas pétreas, não significa admitir como eternos modelos de organização estatal comprovadamente superados ou caducos. A sobrevivência da democracia exige mais do que simplesmente restaurar. Exige reforma para que possa subsistir. Um dos tabus a serem enfrentados é o federalismo simétrico da Constituição, com seu regime de capital única cercada de 27 estados de idênticas atribuições. É chegada a hora de começar a pensar em quebrar o tabu da simetria para expandir a atuação da União, cogitando da criação de territórios federais em zonas problemáticas de fronteira, na federalização das antigas capitais (Rio e Salvador), e também na eventual concessão de maior autonomia a Estados mais desenvolvidos (como São Paulo). Quando fórmulas antigas caducam, é preciso coragem para criar outras. Mas este é assunto para outro artigo.

Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ