quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Estado caro, Editorial FSP

 Levantamento publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que o número de servidores públicos no Brasil não é elevado segundo padrões internacionais. Os dados, que confirmam estudos anteriores sobre o tema, ajudam a qualificar o debate a respeito das distorções do funcionalismo nacional.

De acordo com o Atlas do Estado Brasileiro, há 11,3 milhões de funcionários na União, nos estados e nos municípios, o equivalente a 12,5% de um total de 91 milhões de trabalhadores do país. Trata-se de patamar inferior aos de nações ricas como Reino Unido (22,6%), França (20,3%), EUA (13,6%) e aos de vizinhos como Argentina (19,3%), Uruguai (16,9%) e Chile (13,1%).

Números do gênero têm sido usados desde os anos 2000 para rebater críticas mais e menos fundamentadas às dimensões do setor público brasileiro —ou mesmo para defender a ampliação do quadro de pessoal do governo. Entretanto é preciso adicionar outras considerações à análise.

Por si só, o quantitativo total pouco esclarece se há falta ou excesso de servidores. É plausível que haja carências em determinados setores e regiões, como no caso de médicos para o Norte e o Nordeste, e superabundância em outros.

Não resta dúvida, contudo, que o funcionalismo brasileiro está entre os mais caros do mundo, devido a salários acima da média do setor privado e outros privilégios.

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Segundo a base de dados do Fundo Monetário Internacional que permite comparar estatísticas orçamentárias, nosso gasto público com pessoal, incluindo contribuições sociais e previdenciárias, correspondeu a 11,9% do Produto Interno Bruto em 2021, depois de uma redução forçada por contenção de salários —em anos anteriores, a cifra ficava na casa dos 13%.

Esse dispêndio supera com folga o de países com relativamente mais servidores, como Reino Unido (9,4%), Estados Unidos (8,5%), Alemanha (7,9%) e Chile (6,8%). Dito de outro modo, funcionários públicos se apropriam de uma parcela muito elevada da renda nacional.

Outra questão importante se refere à qualidade do serviço prestado. Esse tipo de aferição é decerto complexa, mas indicadores do país em educação e saúde, por exemplo, sugerem que o gasto nessas áreas é pouco eficiente.

Tudo considerado, uma reforma administrativa deveria fazer valer um teto salarial, reduzir remunerações iniciais e limitar o alcance exagerado da estabilidade no emprego —não para promover demissões em massa, mas para elevar a produtividade do Estado.

editoriais@grupofolha.com.br

A lição chinesa para o Brasil, Elio Gaspari - FSP

 

Está nas livrarias "Como a China Escapou da Terapia de Choque", da economista alemã Isabella M. Weber. O livro vai além, mostra por que e como a China deu certo. Ele é produto da qualidade de sua formação intelectual e do vigor da academia chinesa. A professora serviu-se de uma rica bibliografia e, sobretudo de entrevistas, em chinês, com 44 economistas e burocratas.

Quem quiser cortar caminho poderá começar assistindo à entrevista de Weber ao repórter Mario Sergio Conti, no programa Diálogos da GloboNews que irá ao ar nesta sexta-feira. Nele, virá a revelação das conversas de chineses com o então ministro Delfim Netto nos anos 80, durante o ocaso inflacionário do Milagre Brasileiro.

Weber faz um erudito estudo da economia chinesa e chega ao momento das reformas que acordaram o gigante: "A mão invisível [do mercado] foi introduzida sob a orientação da mão visível [do Estado]". Muitos países em muitas épocas tentaram isso e deram com os burros na água. A China conseguiu porque suas decisões foram tomadas por meio de um sutil processo de consultas.

O presidente Xi Jinping em telão na Bolsa de Valores de Pequim - Jade Gao - 17.fev.22/AFP

Na cúpula, a política chinesa é feroz. O presidente Liu Shaoqi morreu em 1969 numa enxovia e a poderosa mulher de Mao Zedong matou-se na cadeia. (Pelo menos 16 milhões de chineses e possivelmente 40 milhões morreram de fome.) Depois da morte de Mao, a sutileza operou no meio de campo.

No renascimento da China, surgiram figuras que durante a Revolução Cultural (1966-1976) haviam sido desterradas ou presas. Sun Yefang, por exemplo, dizia que "a lei do valor não era a marca registrada do capitalismo, mas uma regra econômica universal".

Em 1977, quando o general Sylvio Frota achava que o presidente Ernesto Geisel tinha algo de socialista por ter restabelecido as relações com a China, o sucessor de Mao, Hua Guofeng, mandou missões exploratórias ao mundo para estudar as reformas necessárias para a China. Em 1978, quando começou a Era de Deng Xiaoping ele tinha um slogan simples: "Buscar a verdade pelos fatos".

O livro de Weber é também um mergulho nas ideias dos economistas de todas as correntes. Os chineses ouviam ex-defensores da ortodoxia stalinista e liberais como Milton Friedman. (Em 1973 Friedman esteve no Brasil, mas o presidente eleito Ernesto Geisel não teve agenda livre para recebê-lo.)

Weber mostra que o modelo maoísta foi virado de cabeça para baixo por um gradualismo experimental. As lutas internas persistiram. O primeiro-ministro Zhao Zhiang morreu em 2005, em confortável prisão domiciliar. A despeito disso, os economistas e os burocratas chineses ouviam-se. Numa comparação grosseira, os tucanos chineses ouviram Eduardo Suplicy e os petistas ouviram Pedro Malan.

Duas gerações, que poderiam ter se chocado, convergiram, olhando para a frente. Mao mandou milhões de jovens para reeducarem-se no campo. Alguns deles estiveram no núcleo da virada porque entenderam a pobreza. Um deles foi Zhou Jiaming, o que conversou com Delfim. Ele ralou um exílio até 1989.

Em Pindorama, ao tempo em que Geisel não teve agenda para Friedman, a editora de um banqueiro conseguiu que o professor americano Paul Samuelson concordasse com a supressão de alguns parágrafos de seu livro onde previa que aquele Milagre Brasileiro poderia azedar.

Weber fecha seu livro com a voz do poeta Antonio Machado (1875-1939): "Caminhante, suas pegadas são o caminho e nada mais; caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar".


Mirian Goldenberg - Os livros salvaram a minha vida, FSP

 Sou, como tantas crianças nascidas em famílias violentas e abusivas, uma sobrevivente. Da infância, só me lembro de cenas de brigas, gritos e surras. Eu me escondia dentro dos armários, tentando ser invisível para não apanhar de meu pai e irmãos.

Minha salvação foram os livros do meu pai. Ainda menina, li todos os livros que encontrei na estante da sala: FreudErich Fromm, Karen Horney, Melanie KleinSartre, biografias, histórias do Holocausto e muitos outros. Não tive Barbies: os livros foram meus únicos brinquedos.

Não sei quantos livros eu li até hoje, talvez alguns milhares. Gosto de brincar com os meus livros: escrever comentários e perguntas para os autores, sublinhar as frases com canetas coloridas, registrar as ideias mais importantes em post its de diferentes tamanhos e cores. Meus livros parecem verdadeiros arco-íris, com post its e anotações com canetas azuis, pretas, vermelhas, amarelas, rosas, verdes, roxas...

Na semana passada, uma jornalista me perguntou quais foram os livros e escritores que mais influenciaram minhas escolhas existenciais. Não tive a menor dificuldade para escolher minhas três musas inspiradoras.

A fotografia de Simone de Beauvoir, nua, no espelho: um belo retrato da liberdade feminina no ano de 1950
A fotografia de Simone de Beauvoir, nua, no espelho: um belo retrato da liberdade feminina no ano de 1950 - Divulgação

'O SEGUNDO SEXO'

Aos 16 anos, li "O Segundo Sexo", de Simone de Beauvoir. Já li tantas vezes o livro que precisei comprar outro, de tão colorido e sublinhado ele estava. É o livro mais importante da minha vida. Imaginem a minha alegria ao receber o convite, em 2019, para escrever a apresentação da edição comemorativa de 70 anos de "O Segundo Sexo". E de ver o meu texto ilustrado com a fotografia de Simone de Beauvoir, nua, no espelho: um belo retrato da liberdade feminina.

Descobri os caminhos da minha libertação com a leitura de "O Segundo Sexo". Simone de Beauvoir me ensinou que eu não estava condenada ao mesmo destino infeliz da minha mãe: ter um marido agressor, alcoólatra e espancador dos filhos. Ela me inspirou a lutar incansavelmente, como luto até hoje, para ser uma mulher independente financeiramente e realizada profissionalmente. Afinal, "não se nasce mulher: torna-se mulher"!

'EM BUSCA DE SENTIDO'

A coluna de Gilberto Dimenstein"Melhor viver do que morrer com câncer", na Folha de 19/7/2009, mostrou a experiência de uma terapia em hospitais de Nova York baseada no livro "Em Busca de Sentido", de Viktor Frankl. No mesmo dia comprei o livro que se tornou minha âncora de salvação.

Frankl, um psiquiatra que sobreviveu aos horrores dos campos de extermínio nazistas, me ensinou que, mesmo nas circunstâncias mais trágicas, ainda tenho a liberdade de escolher a atitude que posso ter frente ao sofrimento inevitável. Além de me ajudar a encontrar o propósito da minha vida, ele me mostrou que o humor é uma arma poderosa na luta por nossa sobrevivência física e emocional.

Nos primeiros dias da pandemia, quando estava afundada no desespero, pânico e depressão, li pela enésima vez "Em Busca de Sentido" e tomei uma decisão que mudou minha atitude: guardei a minha dor em minúsculos pedacinhos de papel, como Frankl fazia, e passei a cuidar da dor das pessoas que eu mais amo. Desde o dia 15/3/2020, o momento mais feliz do meu dia é quando estou escutando, conversando, lendo, cantando, brincando e rindo com meus amigos nonagenários.

'OSTRA FELIZ NÃO FAZ PÉROLA'

Chorei muito quando li a crônica "Despedida", de Rubem Alves, na Folha de 1º/11/2011. Aos 78 anos, ele escreveu:

"Perco o sono atormentado por deveres, pensando no que tenho de escrever. Sinto — pode ser que não seja assim, mas é assim que eu sinto — que já disse tudo. Não tenho novidades a escrever... E é por isso que vou parar de escrever: porque estou velho, porque estou cansado, porque minha alma anda pelos caminhos do Robert Frost, porque quero me livrar dos malditos deveres que me dão ordens desde que me conheço por gente..."

Eu, que já escrevia na Folha desde 1º/7/2010, quase telefonei para o meu cronista favorito, mas não tive coragem de pedir: "Por favor, não pare de escrever. Você é meu mestre na ‘arte de escutar bonito’. Vou te contar um segredo: todos os dias eu releio ‘Ostra Feliz Não Faz Pérola’. Tenho a esperança de que, algum dia, antes da minha despedida, vou aprender a transformar a minha tristeza em beleza".