Ademar Borges
Indultar é extinguir a pena aplicada a alguém em decorrência da prática de crimes, é declarar que o castigo não mais será executado. No Brasil, cabe ao presidente da República conceder o indulto a quem quiser, exceto para condenados pela prática de crimes hediondos, tortura, tráfico de drogas e terrorismo.
Trata-se de uma das formas de participação do chefe do Executivo na política criminal do país. A Constituição confere liberdade para o presidente conceder ou não o indulto, bem como para fixar seus requisitos e extensão. O controle judicial sobre seu conteúdo é restrito e excepcional, cabendo ao Supremo Tribunal Federal analisar —quando provocado— apenas sua constitucionalidade ou adequação a tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte.
Nesse contexto, deve ser discutido o indulto natalino de 2022, que extinguiu a pena dos agentes de segurança pública "condenados, ainda que provisoriamente, por fato praticado há mais de 30 anos". O objetivo foi impedir a responsabilização dos policiais envolvidos no massacre do Carandiru, ocorrido há 30 anos, sem julgamento definitivo.
O ato é objeto de intensas críticas. A primeira delas: o indulto deve ser genérico, voltado a um coletivo de pessoas abstratas. Não poderia ser usado para perdoar especificamente os responsáveis pelo massacre do Carandiru. Não parece uma objeção correta. Ao lado do indulto coletivo, a Constituição também prevê o indulto individual —chamado de graça e destinado a pessoas ou casos específicos, de forma que nada impede a concessão em prol de uma ou um grupo determinado de agentes.
A segunda objeção tem por base a já citada proibição de concessão de indulto àqueles que praticaram crimes hediondos. Esse é o fundamento do pedido da Procuradoria-Geral da República para que o STF invalide o decreto de indulto de 2022. Para fugir dessa vedação, o ato do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) determina que o benefício se aplica apenas sobre delitos que não eram considerados hediondos no momento da sua prática (caso dos crimes cometidos no Carandiru).
A questão: o presidente pode indultar um delito que passou a ser considerado hediondo após a sua prática? Em 2013, o STF, em caso sob a relatoria da ministra Rosa Weber, afirmou que o relevante —para fins de indulto— é a qualificação do crime como hediondo no momento do decreto presidencial, não no de sua ocorrência. Sob essa perspectiva, o benefício aos agentes do Carandiru seria inconstitucional porque, na data do decreto, tais crimes eram considerados hediondos. Tal argumento afeta um tema caro no direito penal, a irretroatividade da lei penal quando prejudicial ao réu, e por isso mesmo segue controverso e polêmico.
Mas há uma terceira objeção: os delitos indultados constituem graves ofensas contra os direitos humanos —delitos de lesa-humanidade—, que não podem ser objeto do benefício sob pena de violar compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos consideram inválidas anistias e indultos amplos, que impõem restrições ao dever de investigar, julgar e sancionar graves violações de direitos humanos (e. g. "Barrios Altos vs. Perú"). A Corte Interamericana apenas autoriza a renúncia de ações penais contra responsáveis pela grave violação de direitos humanos quando necessária para negociar o fim de uma guerra ("Masacres del Mozote vs. El Salvador"), não sendo esse o caso do massacre do Carandiru. Assim, são elevadas as chances de condenação internacional do Brasil pelo indulto em análise. Vale lembrar que a presidente do Supremo, Rosa Weber, ao julgar um indulto natalino do ex-presidente Michel Temer (MDB), chegou a mencionar a possível inconstitucionalidade da concessão de benefícios para crimes de lesa-humanidade (ADI 5.874).
O incentivo à violência policial foi uma das marcas do governo Bolsonaro. O indulto concedido aos responsáveis por um dos mais graves massacres da história do país é o retrato desse projeto de institucionalização do direito de matar impunemente vidas, em especial vidas negras. O STF dispõe de argumentos para impedir que seja bem-sucedida essa abjeta tentativa de deixar, no apagar das luzes do governo, uma marca perene de racismo, impunidade e desumanidade.