quarta-feira, 2 de novembro de 2022

CLAUDIO SZYNKIER - A hegemonia mental é fascista, FSP

 Claudio Szynkier

Músico, artista plástico, crítico e pesquisador de arte

O historiador Valério Arcary (1952), autor de "Ninguém Disse que Seria fácil" (Boitempo Editorial, 2022), tem afirmado que as eleições deste ano ofereceram um novo desafio analítico à esquerda. O ostensivo êxito da extrema direita nos pleitos de outubro não seria desdobramento de um fenômeno chamado antipetismo. O que ocorreu nas urnas —e tem transcorrido silenciosamente nos veios subterrâneos do imaginário do país— seria a adesão orgânica de grande parte da sociedade a um programa econômico e cultural fascista.

Esse programa poderia ser resumido pela ideia de que o explorado de ontem, por um arranjo que privilegia a liberdade, o emprego sem amarras estatais e o empreendedorismo, poderia gozar de ser o explorador de amanhã. Esse é um programa que se sustentaria numa distopia complexa e numa violência entorpecente.

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Apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PL) usa vestimenta que remete à lema fascista: "Pátria, Família e Liberdade" - Pedro Ladeira/Folhapress

A fantasia desse explorado vai sendo reconstruída pelos circuitos linguísticos que se enredam no ambiente público. A exploração e a desigualdade são ressignificadas e desejadas como "liberdade" e mérito pessoal; a "liberdade" e o mérito próprio, por sua vez, ressignificados e desejados como conquista civilizatória. Direitos democráticos universais são caros e antiquados demais.

O fascismo teria ligação com um ramo da violência de massa. Contudo, como demonstram teóricos de várias gerações, de Antonio Negri (1933) a Michael Hardt (1960), o fascismo em seu estilo primordial é a exaltação terminal da individualidade, a celebração de uma hegemonia das células privatistas às quais está destinado o patrimônio financeiro de uma nação. O que Arcary sugere é que a sociedade brasileira teria enfim incorporado um verdadeiro "choque de capitalismo", um rastro elétrico "sismológico" com reverberações culturais e mentais profundas.

O escritor Mark Fisher (1968-2017), autor de "Realismo Capitalista", formula que o capitalismo, para cumprir seu projeto, teria se constituído como uma doença sistêmica da angústia individualizada. Uma trama para que o cérebro humano padeça e, no processo, impossibilite o indivíduo de sair do ciclo do padecimento e se enxergar dentro de um circuito de sofrimento estrutural: dentro da humanidade. Christian Dunker, Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior concluem em "Neoliberalismo como Gestão do Sofrimento Psíquico" que "estamos diante de um quadro de medicina que propõe melhoramento humano como artigo de mercadoria". As pessoas, assim, vão se tratar para funcionar. Funcionar para sobreviver e vivenciar a supremacia dos desejos no campo do consumo.

O que se percebe na produção de símbolos das últimas décadas é uma mercadologização intensiva das experiências brasileiras. No universo sertanejo, por exemplo, prótese musical do agrobusiness, que por sua vez é plataforma do movimento reacionário nacional, foi sendo composto no tempo um arco de referências existenciais e estéticas alusivas a um patrimonialismo específico.

Nesse sistema, vigoram recombinações infinitas de uma musicalidade da pasteurização consumista agressiva, e uma poética das conquistas frustradas ou repossuídas. Nas zonas secretas desse hemisfério cultural individualista, há a exaltação da arma que liberta, invade e confere potência à masculinidade insegura e vingadora. A rigor, reconstituído o todo, o que se forjou é uma constelação de patrimônios sonoros e comportamentais em decomposição simbólica, a emergência de um neolatifundiarismo predatório, e a engenharia psíquica de um continente mental brasileiro inaudito. Um Texas espalhado pelo ar por transmissões neurais e psíquicas. Essa musicalidade e a fabulação desse Texas não estão em desacordo com um outro enredamento de conexões cerebrais, o ecossistema das fake news.

A direita, depois da fase antipetista, definiu um projeto mais nítido: uma nação de torturados e torturadores futuros, de enfermos individuais e individualizados —inclusive as vítimas de sequelas de Covid-19, encorajadas a notar a pandemia como uma "cruzada contra o lucro". Uma reunião de escravizados desabrigados e escravizadores destinados, inflamados pela ideia da individualidade privada e sagrada. Não é tarde para assumir que os triunfos recentes do fascismo foram vitórias estruturais do capitalismo.

Mariliz Pereira Jorge - Golpista sendo golpista, FSP

De onde menos se espera, daí é que não sai nada, diria Apparício Torelly, o "barão de Itararé". Quase dois dias após ser derrotado nas urnas, Jair Bolsonaro deixou milhões de brasileiros e dezenas de profissionais da imprensa plantados, à espera do projeto de ditador finalmente reconhecer o resultado das eleições. Tolinhos — e eu me incluo nesse bonde.

Havia um tiquinho de esperança de que houvesse algum resquício de civilidade. O que tivemos foi mais do mesmo: golpista sendo golpista. Agradeceu os votos dos eleitores, ignorou, como sempre fez, a outra metade do país para quem ele fez questão de não governar, e aproveitou o holofote para
atiçar a militância.

O jornalista e escritor Barão de Itararé, durante entrevista ao jornal Última Hora, em 1958 - Acervo UH/Folhapress

"Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral." Tão direto como só um covarde consegue ser, deu a entender que não foi uma eleição limpa. Recorro ao "barão de Itararé", novamente: "não é triste mudar de ideias, triste é não ter ideias para mudar".

Jair Bolsonaro seria um prato cheio para o "barão" que de nobre tinha apenas o texto afiado, o deboche, o humor anárquico. Jornalista e escritor, Torelly não perdoava políticos, intelectuais, ricos e pobres. Deixou uma lista enorme de frases impagáveis que conversam com o nosso século e com a crônica política atual, embora uma delas tenha ficado datada. "O voto deve ser rigorosamente secreto. Só assim, afinal, o eleitor não terá vergonha de votar no seu candidato."

Presidente Jair Bolsonaro faz pronunciamento após derrota nas urnas dentro do Palácio da Alvorada - Gabriela Biló/Folhapress

Sorte de o "barão" não ter conhecido o eleitor bolsonarista-raiz que não apenas se orgulha, como tem passado os últimos dias defendendo arruaça, fechamento de estradas e acredita que o país vai parar para defender o indefensável: golpe militar. "Sábio é o homem que chega a ter consciência da sua ignorância", diria o barão. Mas isso é mais difícil para o bolsonarismo e para Jair Bolsonaro do que reconhecer a derrota.

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