quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Hélio Schwartsman - Institutos deveriam voltar a fazer pesquisa de boca de urna, FSP

 Quem não saiu bem deste primeiro turno eleitoral foram os institutos de pesquisa. Que eles fossem atacados pelas hostes bolsonaristas já era mais ou menos esperado, mas, desta vez, até o insuspeito New York Times falou mal das pesquisas.

De fato, houve discrepâncias gritantes entre as pesquisas da véspera e os resultados, não apenas na votação de Bolsonaro como também nas disputas de vários governos estaduais e corridas pelo Senado. Diretores de institutos se defendem. Alegam, não sem razão, que o público usa mal as pesquisas. Elas não são um prognóstico eleitoral, mas um instantâneo de momento que retrata só a intenção de voto, e não o voto propriamente dito. Se o eleitor muda de ideia ou só se decide poucas horas antes de visitar a urna, esses não são movimentos que as sondagens consigam captar com eficiência.

Presidente Bolsonaro fala após apuração do primeiro turno
O presidente Jair Bolsonaro fala após apuração do primeiro turno - Ueslei Marcelino - 2.out.22/Reuters

Eu aceito bem essas limitações e, por isso, acredito em pesquisas. Receio, porém, que haja um mal-entendido irredutível. Embora pesquisas só possam, por definição epistemológica, registrar o que já aconteceu, nunca o que acontecerá, as pessoas se interessam por elas porque as veem como uma ferramenta para adivinhar o futuro. É o viés de extrapolação. Ele nos induz a erros, mas, sem ele, não seria tão fácil levantar recursos para financiar tantas pesquisas.

Creio, porém, que existe uma solução parcial para o problema. Os institutos deveriam voltar a fazer no dia do pleito as pesquisas de boca de urna, em que não perguntam em quem o eleitor pretende votar, mas em quem efetivamente votou. Sei que, depois das urnas eletrônicas com apuração ultrarrápida, elas deixaram de ser um produto interessante, pois são caras e duram pouquíssimas horas, entre o fechamento das urnas e a divulgação dos resultados oficiais. Penso, porém, que elas seriam importantes para a reputação dos institutos, que responderiam só por erros reais, e não mais pelo mal-entendido irredutível.

SEM ILUSÃO - Manuel Domingos Neto, do 247

 Lula teve mais votos do que seu adversário. Governadores progressistas foram eleitos no primeiro turno. Outros, podem ganhar no segundo. O PT aumentou sua bancada na Câmara... Polianas apaziguam almas inquietas. Preferem não encarar o perigo. 


O fato é que um Mourão sem carisma toma a vaga de um ícone da resistência democrática. O impiedoso Pazzuello é campeão de votos no Rio. Um ex-juiz destroçador de empregos, de capacidades técnicas e de instituições ganha cadeira no Senado. Um destruidor de florestas e um astronauta que menospreza a ciência são consagrados no poderoso e civilizado estado de São Paulo. Um desconhecido supera Haddad se apresentando como cumpridor de “missão do Capitão”.


Impossível menosprezar a possibilidade de reeleição do atual presidente. A maioria dos brasileiros não tem noção do que isso representa para suas vidas. Muito menos alcança a significação mundial desta eleição.


O que as sondagens de intenção de voto não previram foi a capacidade de articulação e mobilização de uma vasta, intrincada e azeitada (endinheirada) rede de atores políticos decididamente mobilizados e sob coordenação eficiente. 


Com inexcedível capilaridade, espalhada em cada pedaço de chão, capaz de responder em tempo real aos estímulos de um emissor não claramente identificado, essa rede conduz as emoções coletivas. Sabe, inclusive, manipular jornalistas, acadêmicos e líderes políticos tarimbados.


Por acaso, os calculadores de intenção de voto detêm o mapa das ruas do Brasil dominadas por milicianos? Teriam noção de como funciona o controle territorial estendido de norte ao sul do país? 


Dimensionariam efetivamente o poder das milhares de “igrejas” sobre milhões de desesperançados? 


Fariam uma ideia das profusas e densas correias de transmissão da desconhecida “família militar”?


As análises do que ocorreu giram em torno de “migrações” de votos (quem teria sido beneficiado pelo “voto útil”), pendores do baronato financeiro, reacionarismo de homens endinheirados, reações de integrantes de tribunais superiores... 


Levam em conta o Brasil de verdade? Conhecem mesmo esse Brasil? 


As análises tendem a pressupor que o nordestino vota em Lula porque passa fome e é manipulável por crendices. Não levantam a hipótese de que seja mais infenso ou resiliente ao choques cognitivos ou ao pavor moral bem programado por terroristas da internet. Repelem a ideia de que o Brasil se nordestinize políticamente.


As análises tendem a pressupor um Brasil em que os golpes se davam com mobilização de tanques, não com o manuseio de ansiedades e temores coletivos. Não captam que os comandantes militares, além de conduzir fileiras, foram treinados para conduzir operações “psicossociais”. 


A esquerda institucional parou, faz tempo, de chamar os mais sofridos à luta. Acostumou-se a convocá-los às urnas para consagrar representação política prometedora de benesses. Ora, as urnas foram arrumadas para manter a ordem iníqua. O presidente atinge o coração de muitos quando, encarnando o sistema em sua essência cruel, conclama contra o sistema.


Contra esse farsante, Lula deve chamar o povo para mudar o Brasil, não para retornar ao tempo em que o povo comia picanha, viajava de avião e tinha chance de alcançar o ensino superior.


A política encerra a promessa de um bem, dizia Aristóteles. O bem que os brasileiros esperam não é o retorno quimérico ao passado, mas a ruptura com o legado colonial. 


Lula deve apostar na inteligência do povo e descrever tim-tim por tim-tim o que pensa em fazer para mudar o Brasil. Ainda dá tempo.


Manuel Domingos Neto nasceu em Fortaleza em 1949. Graduou-se em História pela Universidade de Paris VI, em 1976. Obteve o título de Mestre em Sociedade e Economia na América Latina, pela Universidade de Paris III, em 1976, e o título de Doutor em História pela mesma universidade, em 1979. Foi pesquisador da Casa de Rui Barbosa, superintendente da Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí, estado pelo qual também foi deputado federal. Professor da Universidade Federal do Ceará e professor associado da Universidade Federal Fluminense, foi também vice-presidente do CNPq e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED).

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Atila Iamarino - Não aprendemos com a pandemia, FSP (definitivo)

 O que leva alguém a acreditar em mentiras? Falta conhecer a verdade? Ou estar enganado tem seu valor?

Muito da divulgação científica se baseia no deficit de informação: as pessoas não sabem como o universo funciona e se isso for bem explicado vão aceitar. Segundo esse modelo, o papel dos experts seria traduzir a informação para quem carece dela. Um modelo simples que foi assumido no relatório "The public understanding of science", algo como "O entendimento público da ciência".

Escrito por Walter Bodmer, foi um relatório pró-popularização de ciência que em 1986 recomendou aos ingleses produzir conteúdo em mídias e abrir espaços como museus para melhorar o entendimento público de ciência.

O ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, de máscara, olha para a câmera
O ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que não sabia o que era o SUS, recebeu mais de 200 mil votos para deputado federal no Rio de Janeiro - Edilson Rodrigues - 20.mai.21/Agência Senado

Quando o assunto é algo sobre o que as pessoas têm pouco ou nenhum apego emocional, esse deficit pode até ser o caso. Explicar que objetos metálicos não vão no forno micro-ondas pode ser produtivo. Mas quando se trata de um assunto emocional ou identitário, como a evolução humana ou mesmo a catástrofe climática que causamos, simplesmente prover o consenso científico não chega perto de mudar o que muitos pensam.

Somos animais sociais imersos em cultura, onde pode ser muito mais importante acreditar e repetir ideias que o seu grupo promove do que se isolar aceitando a realidade. Muitos estão mais do que dispostos a aceitar mentiras convenientes. Mentiras claramente falsas, mas que servem para quem quer acreditar tapar o buraco que os fatos abrem.

Se falta um novo relatório concluindo que o modelo de deficit de informação é falho, basta perguntarem o que os checadores de fatos pensam sobre o primeiro turno das eleições. A mentira pode ter perna curta, mas tem quem a carregue para muito longe, mesmo quando o preço é alto. A desigualdade e a pobreza aumentaram o estrago da Covid, mas um padrão notável segue uma trajetória diferente.

Durante a segunda onda, em 2021, quando a adoção das medidas de combate já estava sob a responsabilidade de estados e municípios, as cidades que concentraram mais votos no atual presidente em 2018 tiveram proporcionalmente mais mortes.

Moradores de municípios pequenos e médios mais ricos do que a média nacional e com mais votos de direita em 2018, como no interior paulista, tiveram mais chances de morrer de Covid do que moradores de municípios do mesmo tamanho com renda e infraestrutura de saúde menor, mas que seguiram menos as recomendações do presidente. São pessoas que morreram sem vacina, tomando cloroquina e acreditando que a Covid seria só uma gripe e que não precisavam se isolar em casa. Pagaram com a vida por essas mentiras.

E agora, em 2022, depois de mais estrago econômico, social e moral, muitos desses municípios repetiram o mesmo padrão de voto. O ex-ministro da Saúde, que não sabia o que era o SUS, que promoveu tratamento precoce e viu 270 mil mortes acontecerem enquanto obedecia ordens de um governo negacionista que atrasava as vacinas, recebeu mais de 200 mil votos no Rio de Janeiro. O ex-ministro do Meio Ambiente, investigado por tráfico de madeira da Amazônia, recebeu mais de 600 mil votos em São Paulo. Entre outros.

Mentiras, como a de que o governo federal não poderia agir ou que o tratamento precoce poderia evitar a falta de oxigênio em Manaus ainda são um escudo contra a responsabilidade pela calamidade evitável. Para o desespero de cientistas, jornalistas e quem mais quer viver em um mundo baseado na realidade, pode ser difícil mentir para todos o tempo todo, mas mentir para 50 milhões de brasileiros por 4 anos parece bem factível.