domingo, 22 de maio de 2022

Imarcescível, Karnal, OESP

 Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo

22 de maio de 2022 | 03h00

A palavra é difícil de escrever. Um solene “sc” no meio e conteúdo desconhecido da maioria. Quantas vezes, nos últimos anos, sua fala incluiu o termo imarcescível? 

Vamos nos aproximar um pouco da antiga seção “enriqueça seu vocabulário” da revista Seleções. Sua orquídea resiste na sala há 21 dias sem murchar? Talvez ela seja imarcescível. Algo que não fenece, jamais perde o viço, mantém o vigor original é parte da definição do vocábulo título da minha crônica. Com sentido figurado, aplica-se ao que nunca pode ser corrompido pelo tempo. Pode até ser elogio a sua colega de Ensino Médio que você reencontrou em um restaurante: Márcia, você tem um rosto imarcescível! Se ela for uma pessoa de vocabulário rico, baixará o rosto, corada. Ficar vermelho diante de um elogio é uma forma sofisticada de dizer: concordo, mas a humildade social impede que eu grite sim nesse instante. 

Dicionário
Imagem ilustrativa de dicionário Foto: Pixabay

Aproveito a palavra menos comum para tocar em um ponto delicado. Qual o sentido de aprender algo novo como a palavra que usei? Amplio: e o currículo escolar em si? O influencer Felipe Neto causou impacto nas redes ao declarar que ainda não tinha encontrado utilidade prática para o Teorema de Pitágoras. 

O conhecimento tem sido, com frequência, um distintivo social. Gramática não serviria, de fato, para afinar a comunicação, todavia para dizer quem é quem. Quem estudou muito sabe distinguir entre aposto explicativo, enumerativo, comparativo, circunstancial etc. Ao identificar que está utilizando um deles com acerto e consciência, causa em outros que estudaram a boa sensação de que se trata de alguém que pertence ao mesmo grupo. Resolve-se a identidade pela regra da língua. “Você ouviu? Ele pronuncia aerosol e não aerossol. Não vamos nos misturar com esse tipo de gente.” Parece cômico, porém toca no ponto real. Gramática é usada como exclusão.

Volto ao ponto: quando fará falta imarcescível? Quando você, se não for da área de exatas, utilizou o Teorema de Pitágoras? Eu, como nerd confesso na juventude, admirava a beleza da hipotenusa e dos catetos. Sei identificar oração reduzida de gerúndio e ainda respondo, com rapidez, se alguém me pergunta qual grande rio da África atravessa a linha do Equador duas vezes. 

Sempre imagino em qual jantar poderei elogiar a beleza imarcescível da dona da casa e acrescentar um detalhe interessante sobre a hipotenusa grega ou o rio Congo. Claro: o conhecimento não possui apenas esse item bizarro de enciclopédia antiga ou manual de curiosidades. Quais outras funções?

Prestar atenção em uma palavra nova pode ampliar a maneira de perceber o mundo. A velha história (lendária) de que os esquimós teriam mais de cem palavras para descrever branco. A palavra aguça o olhar e aperfeiçoa a mente. Observar que um termo é escrito com “sc” é uma maneira de prestar atenção à escrita e pode, no extremo, tornar meu olhar mais atento ao conteúdo do texto. Se eu passar para a banda do “tanto faz”, é provável que, além da ortografia, eu me descuide do significado de tudo. Um olhar atento a textos e mensagens estimula a cidadania, diminui nossa chance de sermos enganados pela propaganda comercial e política. Tradicionalmente, os grandes ladrões do erário público brasileiro eram sólidos bacharéis, formados em boas universidades e muito atentos ao vernáculo. Ladrões ágrafos são personagens mais recentes. Como Nelson Mandela, ao lutar contra os racistas da África do Sul, achou fundamental entender o africâner, dominar a língua portuguesa pode ter, em algum setor, destaque na consciência política. Conhecimento liberta e torna, no fim, sua capacidade imarcescível, mesmo navegando no rio Congo sobre uma graciosa linha de hipotenusa pitagórica. 

O saber não melhora eticamente uma pessoa. Canalhas podem ser cultos e até refinados musicalmente. Ortografia não garante criatividade ou estratégia. Opulência vocabular pode vir acompanhada de fraqueza de ânimo. O conhecimento sempre foi a chave do mundo. Na chamada sociedade 5.0 de smartphones e Google, ele é ainda mais fundamental. Os trilionários do planeta vendem ideias, algoritmos e soluções produtivas muito mais que constroem ferrovias ou extraem plutônio. Gado e soja ainda embasam fortunas. Acima dos empreendedores do agro, grandes especialistas em química, biologia e botânica concentram os verdadeiros ganhos. O fazendeiro rico, na prática, é o proletário dos grandes laboratórios ou dos sistemas logísticos de carga do mundo. 

Muita coisa pode ser discutida sobre currículo escolar, caráter prático do conhecimento ou utilidade de tudo. Volto à África do Sul de Mandela: escolas para negros ensinavam trabalhos manuais práticos porque aqueles alunos seriam trabalhadores braçais na cabeça dos organizadores do sistema escolar. Os brancos? Estudavam Filosofia e Literatura: estavam sendo preparados para o controle. Conhecimento é poder. Ensinar só coisas muito práticas é uma excelente estratégia de controle da futura mão de obra. Saber é semear uma esperança imarcescível.

* Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Coragem da Esperança, entre outros

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Quanto custa a internet do Starlink?, Ronaldo Lemos, FSP

 

SÃO PAULO

Na semana passada, o Brasil recebeu a visita de Elon Musk. O bilionário anunciou no Twitter que vai lançar o serviço Starlink na Amazônia, cobrindo "19 mil escolas não conectadas na região". Se for verdade, é uma boa notícia. A tecnologia de satélites de baixa órbita de fato é uma das mais promissoras e baratas para conectar regiões geográficas vastas e com pouca densidade populacional, como é o caso da Amazônia.

No entanto, olhando no site da empresa, hoje não há serviço disponível na região. O portal diz que estará disponível na região amazônica no fim de 2023. Hoje, o serviço pode ser utilizado em uma faixa do país que vai de Santa Catarina até São Paulo e Rio de Janeiro. Mas, afinal, como funciona e quanto custa a conexão da Starlink?

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O funcionamento é relativamente simples. Pelo site da empresa, o usuário pode encomendar uma antena parabólica e um terminal de acesso. O custo para entrega em São Paulo hoje é de R$ 5.138, incluindo os impostos. A partir da aquisição, o usuário tem de pagar R$ 530 por mês pela conexão. A antena precisa ficar instalada em um local que tenha visão livre para o céu. A velocidade da conexão fica em torno de 100 Mbps, com latência também relativamente baixa.

Starlink pretende lançar 42 mil satélites para oferecer o serviço globalmente. Atualmente, há 2.400 satélites lançados. Cada um pesa cerca de 290 quilos. A empresa não está sozinha na prestação desse tipo de serviço. Outros competidores incluem a empresa OneWeb, a Astranis e a própria Amazon, que tem planos de lançar sua própria constelação.

O modelo de serviço também tem gerado controvérsias. Uma delas é a preocupação de que essas constelações em órbita baixa (cerca de 550 km) possam interferir no sinal de satélites de órbitas mais altas, sobretudo os geoestacionários. O BrasilSat A1, por exemplo, está em órbita a cerca de 35 mil quilômetros.

Outra preocupação foi levantada pela Nasa, a de que o brilho desses satélites em baixa altitude pode arruinar as possibilidades de observação espacial a partir da Terra, uma vez que interferem em equipamentos astronômicos.

O impacto geopolítico é outra questão essencial. Esses conjuntos massivos de satélites ocupam dois recursos escassos: as órbitas e as frequências de rádio. Órbitas são geridas pelo Escritório da ONU de Assuntos Espaciais. Já as radiofrequências são geridas pela União Internacional de Telecomunicações, também da ONU, em conjunto com os países.

potencial de conflitos nessas áreas é extraordinário. Recentemente, a China afirmou que teve de manobrar a estação espacial TianHe para evitar colisão com um dos satélites da Starlink, gerando uma reclamação formal na ONU.

Além disso, essas constelações são capazes de monitorar a superfície da Terra em tempo real, analisando dados militares, políticos e econômicos (por exemplo, prevendo se a safra agrícola de um país será promissora ou não). Nesse sentido, países como a Índia estão estudando criar leis para regular esse tipo de coleta de dados, chamados "não pessoais", estabelecendo regras de soberania local para essa forma de análise global.

Ainda vamos viajar muito nos desafios que essa nova corrida espacial vai trazer.


READER

 era Achar que conectar escolas não é prioridade
Já é O 5G estabelecendo obrigações de conectar escolas públicas no Brasil à internet
Já vem Um grande número de escolas públicas ainda sem boa conexão no país

sábado, 21 de maio de 2022

O direitista de Arequipa, Sergio Augusto, OESP

 Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo

21 de maio de 2022 | 03h01

A rala repercussão da puxada que Mario Vargas Llosa deu em Bolsonaro, numa “charla” em Montevidéu, semana passada, causou mais danos à imagem do romancista peruano do que um eventual prejuízo ao ibope eleitoral de Lula. Nenhum lado ganhou ou perdeu voto por conta do inopinado apoio do escritor à reeleição do presidente. 

O nulo impacto da blandície expôs, sim, a frágil relevância atual de Llosa como intelectual público. Cada vez mais inclinado à direita puro-sangue do que ao conservadorismo esclarecido, ao justificar sua preferência com o “argumento” de que Lula foi condenado e preso como ladrão, o ex-quase futuro presidente do Peru se revelou constrangedoramente desatualizado da realidade política brasileira e alheio ao embuste lavajatista.

Mario Vargas llosa
O escritor peruano Mario Vargas Llosa, premiado com o Nobel de Literatura em 2010 Foto: Carlos Jasso/Reuters

Torcer abertamente pela reeleição do mais nefando, incompetente e rejeitado presidente da história do Brasil foi um atestado de rotunda má-fé, pois tolo ele, talvez o único bolsominion de Arequipa, não é.

Llosa sabe quem Bolsonaro é ou ambiciona ser; conhece bem a espécie, já que dois de seus romances históricos, A Festa do Bode e Tempos Ásperos, biografam em detalhes uma dupla de ditadores latino-americanos egressos das Forças Armadas: o dominicano Rafael Trujillo e o guatemalteco Castillo Armas. 

Nas redes sociais, pouco se falou do grau de tolerância que nos permitimos ter em relação às torpezas de criadores cujo talento (ou mesmo gênio) admiramos ou admirávamos. Nessas horas lembram sempre os casos de assumidos fascistas, como Pound, Knut Hamsun, e reaças do porte de Yeats, Eliot e Borges. Como separar (ou não) suas obras de suas sandices? 

Sigo uma regra simples: se a obra (ficcional, poética, etc.) não se deixa contaminar pela sordidez ideológica do autor e dela não faz proselitismo, prevalece a indulgência. É uma questão por demais complexa – sobretudo se na equação incluirmos os filmes de Leni Riefenstahl. 

Só vi, na mídia brasileira, uma reflexão, muito boa, por sinal, motivada pelo surto bolsonarista de Llosa, assinada pelo escritor e ensaísta Julián Fuks, no Uol. Eliane Brum também se manifestou, com a necessária veemência, no El País. E mais nada.

Eu acreditava que os preconceitos eurocêntricos e os argumentos inconsistentes do peruano não haviam contaminado sua prosa ficcional, até ler Fuks e, com bastante atraso, um demolidor ensaio do escritor argentino Juan José Saer, Más Allá del Error, publicado no El País, em junho de 1995.

Saer tem Llosa na conta de um mitômano narcisista, verborrágico e irresponsável, “que fez da agitação uma atividade comercial”. Exagero? Exagero é pedir voto para a extrema direita.