Há datas e datas. O novo romance de Mia Couto, "O Mapeador de Ausências", começa em “Beira, 6 de março de 2019”. Nove dias depois, o ciclone Idai atingiu o continente africano justamente nessa cidade, causando o pior desastre natural da história de Moçambique.
A orelha da edição brasileira tenta ajudar —“às vésperas do ciclone que arrasou a cidade em 2019”—, mas é possível que o leitor brasileiro continue sem ter noção da enormidade do desastre que flutua como nuvens carregadas sobre a trama do livro. Já o leitor moçambicano vê essa data e local e sabe.
Na trama, o famoso poeta Diogo Santiago, nascido e criado em Beira, filho do poeta Adriano Santiago, já morto, retorna à sua cidade natal para receber uma homenagem. As coincidências com a vida de Mia Couto não são acidentais –ele também nasceu e se criou em Beira, filho de um escritor e jornalista.
Portugal inventou o colonialismo europeu na África no século 15, foi quem mais resistiu a encerrar o ciclo. Contra todos os ventos da história, ainda era a última potência europeia tentando manter suas colônias africanas, num Vietnã lusófono tão impopular que acabou varrendo do mapa a própria ditadura salazarista.
Em 1973, o poeta-pai —que define a “arte maior do poeta” como “saber desperdiçar oportunidades”— visita o local de um dos piores massacres daquela guerra e recebe a incumbência de divulgar ao mundo o horror. Já em 2019, o poeta-filho —que se define como “inventor de esquecimentos”— aproveita a passagem pela cidade para se reconectar com as memórias da infância, embora sua própria informante, Liana, confesse a ele que “inventa documentos”. A memória é uma construção, mas de quem?
Quando um regime começa a prender os poetas é porque esse regime está perdido. [...] Se os senhores fossem inteligentes procediam exatamente ao inverso: concediam um prémio ao Adriano. É assim que se cala um escritor. [...] Os senhores não aprenderam com as mulheres da minha geração. Era o que fazíamos no casamento. Trazíamos o lobo para dentro de casa, que era onde ele se convertia num cachorro manso.
O que o poeta-filho não sabe, porém os leitores sim, é que ele está correndo contra o tempo. Em breve, a cidade estará destruída e sua infância, inundada. Pois enquanto a narrativa relembra as últimas catástrofes da guerra colonial, o leitor é sempre remetido para a outra catástrofe mais recente. Não será spoiler apontar o que está no próprio índice –o último capítulo se chama “O Ciclone”. Tudo acaba em vento, água, morte.
Para o leitor brasileiro, Mia Couto chama atenção por ser, hoje, o continuador mais bem-sucedido de Guimarães Rosa. Ambos são homens brancos, usando um idioma europeu e periférico para dialogar com as grandes tradições da cultura ocidental, criando uma linguagem altamente estilizada a partir de elementos populares e produzindo textos que não seguem nem a norma culta literária nem tentam reproduzir de forma condescendente os desvios dessa norma culta na fala do povo.
Pelo contrário, eles articulam vozes poéticas únicas, que unem ambas as tradições das quais são herdeiros, tanto a dita “alta cultura” europeia quanto a oralidade do sul global.
Mia Couto encarna esse não-lugar paradoxal do literato periférico. Não é nem um africano negro escrevendo sobre suas tradições ancestrais, nem um português escrevendo sobre a metrópole, mas sim um biólogo branco que fez a opção de ser moçambicano quando poderia ser europeu.
Diz o lugar-comum que os moçambicanos seriam nossos meio-irmãos, pois compartilharíamos o mesmo pai, só com mães diferentes. Em "O Mapeador de Ausências", entretanto, quando uma das personagens descobre que tem um meio-irmão, ela imediatamente se corrige. “Como não existem parentescos por metade, ele era meu irmão.”
Para o leitor brasileiro querendo conhecer melhor a literatura de nossos irmãos, "O Mapeador de Ausências" é um dos melhores pontos de entrada. O romance traz a prosa poética que caracteriza e distingue a voz de Mia Couto, em uma trama apaixonante sobre as trapaças da memória e os paradoxos de uma guerra colonial que, como não poderia deixar de ser, também é uma guerra civil de irmão contra irmão.