quarta-feira, 16 de março de 2022

Guerra na Ucrânia resgata ideia de que ferramentas digitais podem equalizar atores desiguais, FSP

 

Eduardo Felipe Matias

​Ao menos até a Primavera Árabe, uma década atrás, predominava a visão da internet como um espaço livre que contribuiria para espalhar a democracia pelo planeta. Não demorou, porém, para que autocracias se apropriassem das mesmas ferramentas que alimentavam os protestos contra seus líderes, valendo-se de exércitos de bots e trolls para espalhar desinformação e desacreditar e assediar opositores.

Na Ucrânia –​onde está ocorrendo aquele que talvez seja o primeiro grande conflito armado mundial também travado de forma ampla nesse espaço virtual–, em paralelo aos combates reais, há uma guerra de informação em curso. Nesta, até o momento, quem está perdendo é um governo autoritário, comandado justamente por um czar da desinformação, Putin, temido pela capacidade de usar a máquina de propaganda russa para desestabilizar outros países.

Isso resgata a ideia de que as ferramentas digitais têm o potencial de equalizar as forças de atores desiguais. Porém, além da bravura e da criatividade do povo ucraniano e de seu presidente e da torcida de boa parte da população mundial que curte e compartilha seus vídeos e memes, há algo mais que justifica essa vitória da narrativa de Davi contra Golias: a mudança de postura de um ator cuja influência supera a de muitos Estados-nação, as big techs, que detêm monopólios que frustraram o ideal libertário inicial de uma internet descentralizada e sem donos.

Logos das redes sociais Twitter, Facebook e YouTube sobre bandeira russa - Dado Ruvic/Reuters

Isentas de responsabilidade pelo que as pessoas publicam nas mídias sociais por elas controladas, essas empresas por muito tempo lavaram as mãos e seguiram lucrando com cada clique, não importando se este direcionasse a discursos de ódio ou fake news. Mas, recentemente, começaram a notar que não lhes restava outra opção a não ser assumir a tarefa de moderar conteúdos, nem que fosse para evitar que um ambiente crescentemente tóxico afugentasse usuários e anunciantes, prejudicando seus negócios.

Agora, em um desses episódios que não dão margem para a neutralidade, elas resolveram sair de vez de cima do muro. Em discussão no Cyber Policy Center da Universidade Stanford, representantes de Facebook e Twitter descreveram como seus algoritmos têm deixado de recomendar posts de perfis russos, rotulado publicações das mídias estatais do país e criado fricções para quem quiser repassá-las, acrescentando uma etapa de confirmação –medidas que têm reduzido compartilhamentos em mais de 80%.

O peso geopolítico das big techs não é segredo e foi utilizado por Mark Zuckerberg para se esquivar das ameaças de ações antitruste, escancarando que seria melhor para o interesse nacional dos EUA contar com empresas dominantes no setor de tecnologia em vez de ceder essa posição a concorrentes chinesas.

Se Coca-Cola, McDonald's e outras multinacionais se posicionaram contra a Rússia nesta guerra, por que as big techs não poderiam fazer o mesmo? Como as demais, elas são entes privados, e suas boas intenções parecem evidentes neste conflito em que a insana agressão por um dos lados o torna indefensável. Não se pode, entretanto, deixar de refletir sobre o papel inigualável dessas empresas no mundo atual. Big techs comandam redes sociais que são, para boa parte das pessoas, as principais fontes de informação e as praças públicas onde as discussões políticas ocorrem.

Outras disputas –internacionais e internas– virão, e nestas talvez o certo e o errado não sejam fáceis de arbitrar, nem as motivações para apoiar um ou outro lado tão claras. Daí a necessidade de se desenvolver, cada vez mais, mecanismos que confiram transparência e legitimidade às decisões por elas tomadas, evitando que interesses ocultos prevaleçam.

O fato de que hoje aplaudimos a ação das big techs não significa que não devamos permanecer atentos aos riscos de um sistema que lhes confere imenso poder econômico e influência decisiva sobre a democracia, o que pode levá-las também a se tornarem senhores da guerra de informação digital.


terça-feira, 15 de março de 2022

Enéas Carneiro e o paraíso das coincidências, OESP

 Humberto Dantas

22 de fevereiro de 2022 | 18h57

Já parou para pensar? Se Enéas Carneiro não tivesse morrido em 2007, seu discurso radical e intenso encontraria eco hoje. Se ele reclamava que tinha poucos segundos de TV para disseminar pensamentos intensos em campanhas eleitorais, faria facilmente muito mais sucesso que alguns gurus da direita extremista nas redes sociais. Mas isso Enéas não viu nem viveu.

A despeito de ter nascido em 1938, e de no ano que vem completarmos 85 anos de tal data, certamente uma associação dele com Jair Bolsonaro seria algo muito forte e simbólico para determinados segmentos da sociedade. Ambos conviveram por alguns anos na Câmara dos Deputados, e existem fotos e registros de alguns encontros entre eles. Tenho conhecidos que passaram instantes com o finado médico, e só me resta saber se ele, absolutamente intolerante com a falta de inteligência, teria paciência com o esperto Bolsonaro – que já se disse inspirado pelo ex-colega de Parlamento e usa parte de suas ideias em alguns discursos e posicionamentos.

Enéas era presidente do Prona, e coincidentemente a fusão com o Partido Liberal em 2006 deu origem ao Partido da República (PR). O PR voltou a se chamar PL em 2019, sob os mesmos dirigentes e pessoas que o levaram do colo de Lula em 2002 ao mundo bolsonarista em 2021. Enéas vivo, fico pensando se seria presidente com Bolsonaro de vice. Se seria o vice dos sonhos do capitão já em 2018. Se seria ministro da Saúde em meio à pandemia. Ou trabalharia na Defesa, dada sua tara pela bomba atômica e apreço por posições ultranacionalistas. 

Enéas em 2002 foi eleito deputado federal com mais de 1,6 milhão de votos pelo estado de São Paulo. A marca só seria superada, coincidentemente, por Eduardo 003 Bolsonaro em 2018. À ocasião do médico ultra-votado a regra era clara: quociente eleitoral superado individualmente, os votos adicionais eram transferidos para o partido sem qualquer exigência de performance por parte de colegas de legenda para a ocupação de uma cadeira pelo sistema proporcional. O Enéas dos quase 1,6 milhão de votos só utilizou 300 mil, o resto fez outras cadeiras no partido.

Atualmente, numa reforma apelidada de modo descompromissado com a história, criamos a “Lei Tiririca” – que exige que para se beneficiar das votações expressivas de um puxador de votos, qualquer eleito tenha ao menos o equivalente de adesões, em si, a 10% do quociente eleitoral de uma dada realidade estadual (deputados) ou municipal (vereadores). Francisco Everardo, digno palhaço na TV, coincidentemente eleito três vezes pelo PR a partir do pleito de 2010, teve 1,2 milhão de votos em sua primeira eleição. Mas todos os colegas de coligação, coincidentemente formada por PR e PT, que contava ainda com PRB (hoje Republicanos) / PC do B / PT do B (atual Avante) – à época em que acordos dessa natureza ainda eram celebrados nos pleitos proporcionais – tiveram votações expressivas. O último eleito nesse bloco teve quase 100 mil votos. Assim, a mudança devia atender pelo nome de “Lei Enéas”, ou no máximo “Lei Russomanno”, coincidentemente apoiado por Bolsonaro em 2020 para a Prefeitura de São Paulo. Quando a medida foi aprovada, em 2015, ele era o único deputado federal que havia trazido em sua chapa um colega com “baixa votação”.

Com Enéas tudo isso foi diferente em 2002. Ele puxou cinco deputados federais, toda a chapa, com votações pífias. Veja só: Amauri Gasques teve pouco mais de 18 mil votos, Irapuan Teixeira, Elimar Damasceno, Ildeu Alves de Araújo e Vanderlei de Assis de Souza entre cerca de 300 e 1.000 votos cada. Isso mesmo: menos de MIL votos. Ou seja: menos de 0,4% do quociente eleitoral. Em 2014, eleição que escolheu os parlamentares responsáveis pela “Lei Enéas”, apenas Fausto Pinato, na carona de Russomanno no então PRB, ficou abaixo dos 10% do quociente eleitoral em todo o Brasil – interessante a criação de uma regra que abatia UM caso, mas em 2018 ela foi capaz, coincidentemente, de conter o PSL em diversos lugares do Brasil na onda bolsonarista de políticos débeis puxados por expoentes radicais.

Pois bem. Dito tudo isso, onde andam essas figuras eleitas abaixo do radar da “Lei Enéas”? Fausto ainda é um político jovem, tem atualmente 44 anos, é de 1977. Em 2014 ainda trafegava na casa dos 30 e tantos anos. Ele soube aproveitar politicamente o mandato de deputado federal. Saiu do PRB pela exceção federal à lógica municipal da janela de troca partidária em direção ao Progressistas. Coincidentemente, foi Bolsonaro pulando do PP para o PSC, e ele do PRB para o PP. Em 2018, o demonstrativo de força: mais de 118 mil votos, ou seja, quase multiplicou por dez a chance que teve em 2014. Mas e o pessoal de Enéas? Dos cinco puxados, três eram médicos, dois inclusive do Rio de Janeiro – de onde também vinha Enéas. Amauri é facilmente encontrado na internet como cardiologista, e seu nome apareceu no famoso escândalo dos sanguessugas. Em 2006 tentou se reeleger, coincidentemente pelo PL, mas teve só 14 mil votos. Com mandato na mão, quatro anos de experiência e menos quatro mil votos.

Irapuan, professor gaúcho, tinha sido candidato a vice-presidente na chapa de Enéas em 1998, e já havia tentado outros cargos nos anos 90. Se em 2002 foi eleito com menos de mil votos, em 2006, coincidentemente, estava no PP – tendo sido chamado de traidor por Enéas – e aumentou de forma expressiva sua votação. Quase bateu dois mil eleitores, o que me parece uma aberração para quem cumpre um mandato e tem formas estratégicas, lícitas e inteligentes de estabelecer redes e conquistar espaço. Ficou quatro anos na Câmara e seu currículo, repleto de títulos no campo da filosofia e da teologia, foi triturado por reportagem da Revista Época. Paciência. Não foi o primeiro, e não seria o último, mas diante de tantos casos recentes tinha potencial para estar no atual governo. Desfiliou-se do PP em 2018.

Elimar Damasceno não é traidor. Pelo contrário. Médico, fundou o Prona, cumpriu o mandato pelo partido, tentou se reeleger em 2006, teve menos de 2 mil votos e foi absorvido no gabinete de seu líder maior, onde ficou até o falecimento de Enéas. 

Ildeu Araújo teve problemas desde o início do mandato. Fundador do partido, transferiu seu título do Distrito Federal para o interior de São Paulo apenas para disputar a eleição. Com dificuldades para comprovar domicílio, enfrentou processos até 2004, mas seguiu adiante. Coincidentemente, juntou o que existe de pior nas descrições dos colegas: foi tratado por traidor por trocar o Prona pelo PP, e apareceu em escândalo de compra de insumos de saúde que arrolou dezenas de parlamentares. Em 2006 fracassou nas urnas, mas teve dez vezes mais votos, chegando a quase 4.000 eleitores.

Por fim, o menos votado de todos. Vanderlei de Assis de Souza nem tentou a reeleição em São Paulo. Coincidentemente acusado de problemas com domicílio eleitoral, enfrentou processos e no primeiro mandato voltou com seu título para o Rio de Janeiro – mesmo representando São Paulo. Seguindo colegas, coincidentemente traiu Enéas, foi para o PP e se envolveu em escândalos de corrupção associados à máfia dos sanguessugas. Na internet aparece com carreira em organismos fluminenses de saúde e ainda exerce a carreira de médico.

Volte ao começo do texto: com uma turma tão apurada assim, fico imaginando quem efetivamente era Enéas e quantos escândalos teriam aparecido se ele tivesse vivo, ao lado de Bolsonaro, no controle do país. Coincidentemente, penso quantos desses nomes acima estariam unidos pelo Brasil, pela pátria, contra a corrupção e pela família. Bolsonaro, a despeito de todos esses personagens, segue ileso, sem um caso de corrupção. Ahã. Seus amigos que o digam…

A imbecilidade nos tempos de Bolsonaro, Álvaro Costa e Silva, FSP

 Em 1964, Stanislaw Ponte Preta, heterônimo do jornalista Sérgio Porto, publica o livro "Garoto Linha Dura", título que alude ao ambiente pesado do país, sobretudo à perseguição política, censura e deduragem. "Escolhi para título a história do garotinho que se deixou influenciar pelo mais recente método de democratização posto em prática no Brasil", explica o autor.

Pedrinho, o tal garoto linha dura, para fugir do castigo por ter quebrado uma vidraça jogando futebol na rua, entrega um colega e diz ao pai: "Esse menino do vizinho é um subversivo desgraçado. Não pergunta nada a ele não. Quando ele vier atender a porta, o senhor vai logo tacando a mão nele".

Ao longo dos primeiros anos da ditadura militar, Stanislaw se dedica, com espanto e revolta, ao "Febeapá", um relatório publicado na imprensa com pequenas histórias absurdas que se tornaria um documento da História do Brasil: "Notei o alastramento do festival de besteira depois que uma inspetora de ensino no interior de São Paulo, ao saber que seu filho tirara zero numa prova de matemática, não vacilou em apontar às autoridades o professor da criança como perigoso agente comunista".

Os bedéis ressentidos estão hoje no poder. A diferença em relação ao passado é que o idiota sob Bolsonaro faz um julgamento elevado de si mesmo, sente-se orgulhoso da própria imbecilidade. No Febeapá, os estúpidos ainda tinham capacidade de sentir vergonha. Não é o caso do deputado Pastor Sargento Isidório, que propôs um projeto para barrar a "Bíblia gay". É o auge do festival, cuja edição moderna vem ampliada. Além das besteiras, avança no autoritarismo.

A Câmara bota fé nos delírios do pastor. Aprovou um pedido de urgência na votação que proíbe e criminaliza o uso da palavra Bíblia fora do contexto religioso. Eu posso parar na cadeia se escrever que "Riso e Melancolia", de Sergio Paulo Rouanet, é uma bíblia dos estudos machadianos.