Ao menos até a Primavera Árabe, uma década atrás, predominava a visão da internet como um espaço livre que contribuiria para espalhar a democracia pelo planeta. Não demorou, porém, para que autocracias se apropriassem das mesmas ferramentas que alimentavam os protestos contra seus líderes, valendo-se de exércitos de bots e trolls para espalhar desinformação e desacreditar e assediar opositores.
Na Ucrânia –onde está ocorrendo aquele que talvez seja o primeiro grande conflito armado mundial também travado de forma ampla nesse espaço virtual–, em paralelo aos combates reais, há uma guerra de informação em curso. Nesta, até o momento, quem está perdendo é um governo autoritário, comandado justamente por um czar da desinformação, Putin, temido pela capacidade de usar a máquina de propaganda russa para desestabilizar outros países.
Isso resgata a ideia de que as ferramentas digitais têm o potencial de equalizar as forças de atores desiguais. Porém, além da bravura e da criatividade do povo ucraniano e de seu presidente e da torcida de boa parte da população mundial que curte e compartilha seus vídeos e memes, há algo mais que justifica essa vitória da narrativa de Davi contra Golias: a mudança de postura de um ator cuja influência supera a de muitos Estados-nação, as big techs, que detêm monopólios que frustraram o ideal libertário inicial de uma internet descentralizada e sem donos.
Isentas de responsabilidade pelo que as pessoas publicam nas mídias sociais por elas controladas, essas empresas por muito tempo lavaram as mãos e seguiram lucrando com cada clique, não importando se este direcionasse a discursos de ódio ou fake news. Mas, recentemente, começaram a notar que não lhes restava outra opção a não ser assumir a tarefa de moderar conteúdos, nem que fosse para evitar que um ambiente crescentemente tóxico afugentasse usuários e anunciantes, prejudicando seus negócios.
Agora, em um desses episódios que não dão margem para a neutralidade, elas resolveram sair de vez de cima do muro. Em discussão no Cyber Policy Center da Universidade Stanford, representantes de Facebook e Twitter descreveram como seus algoritmos têm deixado de recomendar posts de perfis russos, rotulado publicações das mídias estatais do país e criado fricções para quem quiser repassá-las, acrescentando uma etapa de confirmação –medidas que têm reduzido compartilhamentos em mais de 80%.
O peso geopolítico das big techs não é segredo e foi utilizado por Mark Zuckerberg para se esquivar das ameaças de ações antitruste, escancarando que seria melhor para o interesse nacional dos EUA contar com empresas dominantes no setor de tecnologia em vez de ceder essa posição a concorrentes chinesas.
Se Coca-Cola, McDonald's e outras multinacionais se posicionaram contra a Rússia nesta guerra, por que as big techs não poderiam fazer o mesmo? Como as demais, elas são entes privados, e suas boas intenções parecem evidentes neste conflito em que a insana agressão por um dos lados o torna indefensável. Não se pode, entretanto, deixar de refletir sobre o papel inigualável dessas empresas no mundo atual. Big techs comandam redes sociais que são, para boa parte das pessoas, as principais fontes de informação e as praças públicas onde as discussões políticas ocorrem.
Outras disputas –internacionais e internas– virão, e nestas talvez o certo e o errado não sejam fáceis de arbitrar, nem as motivações para apoiar um ou outro lado tão claras. Daí a necessidade de se desenvolver, cada vez mais, mecanismos que confiram transparência e legitimidade às decisões por elas tomadas, evitando que interesses ocultos prevaleçam.
O fato de que hoje aplaudimos a ação das big techs não significa que não devamos permanecer atentos aos riscos de um sistema que lhes confere imenso poder econômico e influência decisiva sobre a democracia, o que pode levá-las também a se tornarem senhores da guerra de informação digital.
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