terça-feira, 28 de dezembro de 2021

O império do gás, por Carlos Cavalcanti, EPBR

 

Foi assinada, no dia 1º de outubro de 2021, a prorrogação antecipada do contrato de concessão da Comgás, por mais vinte anos. A prorrogação conta com os respaldos legal (Lei Estadual 16.933/2019), contratual (cláusula 5ª do Contrato de Concessão CSPE/01/1999), regulatório (avaliação e anuência da ARSESP) e anuência do poder concedente (parecer da PGE e assinatura do governo estadual).

O pedido feito pela concessionária, em setembro de 2019, foi submetido à Consulta Pública pela agência reguladora, que contou com ampla participação da sociedade – poder público, consultorias, associações de classe e cidadãos interessados.

A minuta de aditivo contratual recebeu o apoio de parcela considerável das contribuições, assim como sugestões para seu aperfeiçoamento — parcialmente acatados pela agência reguladora. Pequena parte das associações de classe, que representam algumas poucas indústrias, manifestaram preocupação com o suposto tempo exíguo para análise da documentação. Sem, no entanto, contestação objetiva à prorrogação.

Curiosa, porém, foi a contribuição enviada por uma Subsecretaria do Ministério da Economia (SEAE) à consulta pública, assim como a participação de representante da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), em evento promovido por dois deputados da Assembleia Legislativa de São Paulo, a respeito do mesmo tema.

Apesar de ter chamado atenção, a contribuição da SEAE parte de uma premissa completamente equivocada. 

Afirma que o aditivo contratual traz como obrigação a construção do gasoduto “Subida da Serra”, o que teria “efeitos negativos (…) aos elos da cadeia produtiva de petróleo e gás” e “à economia como um todo”.

O equívoco reside no fato de que o gasoduto em questão sequer é citado no aditivo contratual, afinal sua implantação foi aprovada pela ARSESP dois anos antes, ainda em 2019, no âmbito da 4ª Revisão Tarifária da Comgás. 

O projeto consta do plano de investimentos da concessionária (2018-2024) e foi também submetido à Consulta Pública, antes de ser aprovado pela Agência, reconhecido o critério de prudência do investimento (uso, utilidade e razoabilidade dos custos). Naquela oportunidade, não houve manifestação da SEAE ou da ANP.

O mesmo gasoduto tem sido alvo de ataque recente pela ANP. Em clara invasão de competência regulatória, a agência federal considerou que o gasoduto deve ser classificado como de transporte, afrontando a Constituição Federal, as Leis do Gás (Leis 11.909/2009 e 14.134/2021) e manifestações anteriores da área técnica da própria agência.

Nesse ponto, surge a grande questão: por que os órgãos federais manifestaram preocupação com um gasoduto de distribuição de apenas 15 km, que começa e termina dentro da área de concessão estadual e serve para atender a região metropolitana de São Paulo? O que há de tão relevante nesse duto, que atraiu a participação da burocracia federal para um processo eminentemente local?

Não é novidade para ninguém que as promessas do “Novo Mercado de Gás” seguem cobertas por uma camada de sal, sete mil metros abaixo da superfície do mar. Ao invés do propalado gás natural a US$ 5/MMBTU, a indústria paga, hoje, gás a quase US$ 20/MMBTU — com perspectivas de fortes reajustes em 2022.

A agenda regulatória da abertura do mercado de gás segue lentamente, preservando privilégios e prolongando o monopólio da Petrobras no setor. As tarifas de transporte do Gasbol poderiam ter caído até 70%, se a ANP tivesse reconhecido que o gasoduto já está amortizado — conforme alerta da própria Petrobras. Já as tarifas das Malhas Sudeste e Nordeste seguem intocadas, mesmo após a transferência do controle acionário pela Petrobras, garantindo retornos bilionários aos seus novos controladores.

Estranhamente, o que causa preocupação nas autoridades é a construção de um gasoduto de distribuição. O problema é que, ao trabalhar contra o “Subida da Serra”, ANP e Ministério da Economia atentam contra os próprios pilares de um mercado aberto e competitivo de gás natural. Pior: condenam os consumidores de São Paulo à escravidão no transporte e na comercialização de gás.

Com o “Subida da Serra”, consumidores livres e regulados de São Paulo terão acesso a diferentes fontes de suprimento, livrando-se do monopólio da Petrobras, uma vez que estarão diretamente conectados ao mercado internacional. 

Ao contrário do que alguns hoje divulgam, o objetivo do duto nunca foi isolar São Paulo, mas trazer competição e racionalidade econômica ao mercado de gás no país. Com acesso a outras fontes de suprimento no litoral e sem depender das operadoras de transporte atuais, estariam criadas as condições para a expansão do livre mercado de gás. 

Ora, qual o grande risco desse arranjo? Trazer competição para o setor de gás no país? 

É legítimo que aqueles que estão sentados sobre fluxos de caixas bilionários trabalhem contra isso, mas é inadmissível que o poder público jogue o mesmo jogo de cartas marcadas.

Fica evidente que se criou no país uma classe de agentes intocáveis no mercado de gás. Todos advogam a favor de um “novo mercado”, desde que ele seja composto pelos mesmos agentes e siga sem muitos sobressaltos. 

Novos players não são bem-vindos e muito menos a competição é desejada. Isso não pode ser chamado de “novo”. Nem de “mercado”.

Não resta dúvida que, no jogo de interesses do mercado de gás, o risco não é São Paulo formar uma “ilha de gás”, mas seguirmos escravos do “império do gás”, curiosamente defendido por aqueles que deveriam se rebelar contra ele.

Carlos Cavalcanti é vice-presidente da Fiesp e diretor titular do Departamento de Infraestrutura da Fiesp

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Suzana Herculano-Houzel -Onde está a diferença entre cérebros conservadores e liberais, FSP

 Adoro quando a neurociência desaponta o pessoal que quer respostas fáceis. Biologia ou ambiente? Os dois. Dá para aprender línguas durante o sono, dormindo de fones de ouvido? Não, lamento, você tem que agir para encontrar sentido no que ouve. Implante de memória, à la Matrix? Sorry, também não, memórias são circuitos esculpidos no cérebro pelo uso, então sem uso, nada feito. Temos uma parte no cérebro que cuida da imaginação? Não, imaginar é reativar padrões no cérebro na ausência dos sentidos, então, quanto maior seu leque de experiências, mais elementos você terá à disposição da sua imaginação.

Não há respostas fáceis quando a questão é por que somos assim ou assado. Sim, a biologia de cada um é um ponto de partida importante, como a planta baixa de uma casa que define onde há portas e janelas. Mas o que se passa entre as paredes não está na casa e, sim, no uso que se faz dela. "Nós somos o que repetidamente fazemos", diria meu pai, parafraseando Aristóteles.

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Fico feliz, portanto, ao me deparar com um estudo sobre os cérebros de conservadores e liberais norte-americanos e seus padrões de atividade quando confrontados com vídeos polêmicos sobre imigração.

Muro incompleto construído entre a fronteira dos Estados Unidos e do México
Muro incompleto construído entre a fronteira dos Estados Unidos e do México - Patrick T. Fallon/AFP

Em tempos de partidarismo acirrado, onde representantes eleitos penduram o cérebro no cabide da entrada e votam apenas de acordo com a sua legenda, a facilidade tecnológica de colocar voluntários dentro de uma máquina de ressonância magnética e acompanhar sua atividade cerebral, enquanto liberais e conservadores assistem a discursos e propagandas com os quais eles concordam ou discordam, é um convite ao estudo comparativo da natureza partidária humana.

Assim procederam quatro pesquisadores de vertentes diferentes —um neurocientista, um sociólogo, dois psicólogos—, na expectativa de encontrar diferenças nas regiões do cérebro que processam motivação ou sinais dos sentidos conforme a inclinação partidária do freguês.

Mas o resultado é muito mais interessante do que os pesquisadores esperavam. Há diferença detectável entre o cérebro de liberais e conservadores, como era de se esperar, já que o comportamento é obra do cérebro —mas a diferença não está em uma área cerebral maior ou mais ativa em uns do que outros.

Uma técnica matemática que permite estimar o grau de semelhança entre variações de atividade no cérebro de cada voluntário que assistia aos vídeos provocadores, como quem compara músicas, mostrou que conservadores são semelhantes entre si, assim como liberais são semelhantes entre si, enquanto um grupo é diferente do outro, no padrão de atividade de uma mesma parte do cérebro: o córtex pré-frontal dorsolateral, que cria narrativas e dá preferência a isso sobre aquilo.

Conservadores e liberais escutam as mesmas notas, mas ouvem em seus cérebros músicas completamente diferentes.

Joel Pinheiro da Fonseca - Podemos evitar que a politização destrua nossas vidas?, FSP

 2022 será violento. Bolsonaro fará o que for preciso para se manter no poder. E se os números nas pesquisas não melhorarem, ficará cada vez mais desesperado.

De uma forma ou de outra, todos seremos dragados por essa disputa, que pode separar amigos, parentes, colegas de trabalho e até namorados. Cresce o número de pessoas que não vão para a cama com alguém sem antes saber direitinho em quem a pessoa votou em 2018 e como pretende votar em 22.

O filósofo político Robert Talisse vem acompanhando esse fenômeno e vê razões para nos preocuparmos. É o que ele argumenta em "Overdoing Democracy" (Oxford University Press, 2019, ainda sem tradução), lançado pouco antes da pandemia, mas cujos pontos centrais se tornaram mais fortes desde então.

A orientação política penetrou em basicamente todos os aspectos da vida nos EUA —do canal de notícias consumido e o tipo de música que se ouve à vizinhança em que se mora.

Essa politização dá início a um processo de autosseleção, em que nossas relações ficam cada vez mais restritas apenas a quem vota como nós. Num país bipartidário como os EUA, e com cultura mais ideológica que a nossa, esse processo já está mais avançado, mas caminhamos na mesma direção.

Somos animais gregários que formam coalizões e buscam o poder. A solução tradicional para garantir ordem social era a supressão do dissenso.

A sociedade democrática liberal é uma conquista recente da humanidade, e que jamais será natural. Ela aceita a dinâmica de formação de coalizões, mas sujeita-a a regras.

Projetos políticos (assim como concepções religiosas) diferentes existindo lado a lado e em paz, respeitando regras de comum acordo sobre o que pode ou não ser feito para garantir a vitória, dependem de um equilíbrio muito tênue. Se o meu lado é o certo, com base no quê devo respeitar o outro?

"Tudo é política" é um slogan que pega bem nos meios mais esclarecidos aqui no Brasil. É também, contudo, um veneno que está nos matando aos poucos, tornando a política cada vez mais polarizada e, por isso, menos eficaz.

A pertença à tribo correta, vista como o valor mais importante, toma precedência sobre o encontro de soluções de compromisso que de fato funcionem para resolver problemas da população. Num mundo em que eu sequer convivo com esse outro, ele se torna cada vez mais um monstro da minha imaginação. E como ele não respeita regra nenhuma, eu também me permito não respeitá-las.

Talisse é menos convincente em prescrever soluções. Uma coisa é clara: recomendações individuais podem ajudar cada um de nós a não enlouquecer, mas não dão conta do problema.

É sempre positivo lembrar que a vida tem muito mais do que política, e sacrificar todo o resto —​relacionamentos, interesses, cultura— em nome dela é um jeito seguro de perder tudo que realmente importa. E, no fim das contas, a própria democracia, sacrificada ao fanatismo.

No entanto, por mais que cada indivíduo possa resistir neste ou naquele ponto, o processo geral é implacável.

Cada esfera da vida pode ser utilizada para favorecer este ou aquele lado da disputa, cada escolha de consumo pessoal pode refletir um certo conjunto de símbolos que apontam para um ou outro lado.

Você até pode se desligar um pouco de tudo, mas será que vale a pena, considerando os riscos que se apresentam em 2022? Cada vez mais ressentidos, rumamos para o vórtice. Um feliz Ano-Novo!