segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Ruy Castro - Em busca do tempo perdido, FSP

 Há tempos, folheando livros ao acaso, abri "O Caminho de Swann", de Marcel Proust, bem no trecho em que o personagem mergulha no chá uma madeleine —um bolinho amanteigado, em forma de concha. Ao levar à boca um gole com migalhas do confeito, o narrador recua à infância e isso dispara o processo de pensamento que compõe os sete volumes de "Em Busca do Tempo Perdido", um dos poucos monumentos indiscutíveis da humanidade.

Neste fim de ano, numa reunião, fui servido de uma madeleine. Empolgado, mordisquei-a e, discretamente, escondi-me num canto para esperar que o bolinho desencadeasse em mim um fluxo de memória como o que assomou Proust. Mas, apesar do esforço, não consegui recuar mais que algumas semanas. Estamos prisioneiros da intolerável atualidade brasileira e só voltaremos a sentir prazer em pensar quando nos livrarmos dela.

Sem nossas limitações, a literatura cria sólidas realidades paralelas. Uma madeleine saída do forno, com sua suave alquimia de farinha, manteiga e ovos, não se compara à de Proust. Nenhuma baleia de verdade será tão colossal quanto a Moby Dick de Herman Melville. E nunca um sabugo de milho parecerá tão terrível quanto o descrito por William Faulkner em "Santuário".

Imagine se, na vida real, Diadorim, por mais valente, poderia se passar por um jagunço entre jagunços sem fazer a barba, sem tomar banho no rio e sem fazer xixi em pé —só mesmo em "Grande Sertão: Veredas". E onde o matuto D’Artagnan aprendeu a esgrimir a ponto de fazer frente aos Três Mosqueteiros? Nem Alexandre Dumas saberia dizer. E por que o fabuloso Jeeves, que poderia ser reitor em Oxford ou presidente da Câmara dos Lordes, sujeitava-se a ser mordomo e lavar as cuecas de um dândi idiota? Porque P. G. Wodehouse o quis assim.

Em breve, espero, não precisaremos de madeleines para buscar o tempo perdido. Ele já estará à nossa volta.

Chá com madeleines e os sete volumes da obra de Proust na edição de Le Livre de Poche
Chá com madeleines e os sete volumes da obra de Proust na edição de Le Livre de Poche - Heloisa Seixas

O QUE A FOLHA PENSA - A sombra soviética,

 

Em 25 de dezembro de 1991, um exausto Mikhail Gorbatchov foi à televisão e dirigiu-se pela última vez a seus compatriotas soviéticos para anunciar que o império comunista centrado em Moscou havia cessado de existir.

A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas já não era o que seu nome dizia havia meses, mas o momento entre o solene e o patético permitiu marcar com rara precisão um fato histórico ímpar.

A academia ainda disseca as sete décadas de um experimento social inédito, que fez a ponte entre um Estado feudal e uma superpotência nuclear, vitoriosa numa guerra mundial e líder em campos como a conquista do espaço.

O mesmo colosso impôs uma brutal anulação da liberdade individual, gerando fome e violências indescritíveis a seus cidadãos e àqueles de países sob a influência da adequadamente chamada Cortina de Ferro na Europa.

A implosão do sistema comunista, antes de tudo por suas contradições intrínsecas, liberou uma onda de otimismo nos anos 1990, com apressados falando até no fim da história e na vitória definitiva da democracia liberal como modelo de organização da humanidade.

Que o dito socialismo real não fosse melhor alternativa, isso era claro. Entretanto poucos poderiam dizer que, 30 anos depois daquele dezembro, autoritarismos estariam em alta e os impactos do fim da União Soviética ainda ditariam rumos da política internacional.

Se hoje há um risco real, ainda que reduzido, de a Rússia invadir a Ucrânia e entrar em choque com o Ocidente, é porque o Kremlin viu suas fronteiras encolherem e a Otan avançar suas tropas rumo às proximidades de seu território.

Parece inaceitável na prática para governos a oeste da Rússia, mas é a realidade para um país que sofreu quatro grandes invasões desde o século 18. Profundidade estratégica, o conceito de se defender com aliados ou ao menos vizinhos neutros, é central a Moscou.

Na psique política, o fantasma do comunismo segue rondando cabeças fantasiosas, do interior americano à campanha eleitoral deste ano no Chile, passando pelas redes sociais bolsonaristas.

Mais importante, a debacle de 1991 guia comportamentos no gigante comunista do mundo moderno, a China. Por óbvio, é incomparável a dinâmica de Pequim e da antiga Moscou. Isso dito, o Partido Comunista Chinês aprendeu as lições do fracasso da URSS.

Capitalizou ao máximo suas potencialidades econômicas e entrou em simbiose com o mercado mundial, mantendo ao mesmo tempo um totalitarismo que só tem crescido, fugindo da "glasnost" que ao fim selou o destino soviético.

O quão de barro se mostrarão os pés da fórmula que ora dá esperança aos esquerdistas nostálgicos, apenas o tempo, a exemplo do caso da União Soviética, dirá.

editoriais@grupofolha.com.br


sábado, 25 de dezembro de 2021

Luís Francisco Carvalho Filho - Governo nefasto, FSP

 


Supremo Tribunal Federal conteve parte dos abusos e ilegalidades cometidos pelo governo Bolsonaro porque partidos políticos de oposição reagiram.

O STF é conceitualmente uma instituição inerte: não atua espontaneamente. O procurador-geral da República, Augusto Aras, que, em tese, deveria resistir, é cínico, omisso e subserviente: dá asas para o devaneio criminoso, autoritário e negacionista do presidente eleito em 2018.

Jair Bolsonaro de braços cruzados
Presidente Jair Bolsonaro participa de evento de lançamento programa Rodovida 2022, da Polícia Rodoviária Federal, no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira/Folhapress (14.dez.2021)

Apesar dos defeitos crônicos do sistema partidário, a litigância estratégica de legendas oposicionistas permitiu correção de rumos e retrocessos.

Os exemplos se multiplicam. A partir da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) movida pelo PSB, o Supremo suspendeu a eficácia de decreto segregando alunos com deficiência.

suspensão dos efeitos de resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente revogando medidas protetivas de manguezais e restingas é resultado de arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) ajuizadas por PT, PSB e Rede de Sustentabilidade. O PSB impugnou resolução que zerava o imposto de importação de armas.

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Vários decretos de Bolsonaro facilitando desmatamento ou circulação de armas, assim como a inércia sanitária, foram judicializados pelas oposições. A vacinação de adolescentes, entre outras medidas adotadas pelo STF na pandemia, decorre da iniciativa judicial de PSB, PC do B, PT, PSOL e Cidadania.

PSB, Rede, PT e PDT ajuizaram ADIs contra a reedição de medida provisória rejeitada pelo Congresso, ato definido por Celso de Mello como "inaceitável transgressão". Cidadania, PSB e PSOL são autores de ADPFs contrárias à execução de verbas oriundas das chamadas emendas do relator (orçamento secreto) –mecanismo de corrupção parlamentar.

A novidade é a indisfarçável e melancólica cumplicidade política do PGR, que até a Constituição de 88 detinha o monopólio das representações por inconstitucionalidade de leis e atos normativos.

Não faltam críticas à possibilidade de os partidos políticos com representação no Congresso questionarem no Supremo aquilo que não conseguiram evitar no processo legislativo. Dizem ser mais um fator de ingovernabilidade, gerando empoderamento desmesurado do STF e atraso na implementação de políticas públicas.

Dissertação de mestrado de Daniel Bogéa na Universidade de Brasília indica números eloquentes: durante o governo FHC (1995-2002), foram 429 ações diretas de inconstitucionalidade no STF, sendo o PT o principal litigante. Durante o governo Lula (2003-2010), foram 242 ações, movidas principalmente pelo PSDB e pelos extintos PFL e DEM.

É um cenário interessante e a história registra julgados do STF de grande impacto social e que não tinham o Palácio do Planalto como alvo político.

STF declarou a inconstitucionalidade da Lei de Imprensa, editada na ditadura, no julgamento da ADPF 130, movida pelo PDT. Equiparou transfobia e homofobia ao crime de racismo no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO 26) movida pelo PPS. Declarou que as penitenciárias brasileiras vivem um quadro de violação sistêmica de direitos fundamentais ("estado de coisas inconstitucional") no julgamento da ADPF 347, ajuizada pelo PSOL.

É do PSB a ADPF das Favelas, que reduziu no Rio de Janeiro, durante alguns meses, a letalidade policial.

Que, em 2022, os partidos de oposição sejam capazes de vencer Jair Bolsonaro e seu entorno medíocre, repugnante, nefasto.