Há tempos, folheando livros ao acaso, abri "O Caminho de Swann", de Marcel Proust, bem no trecho em que o personagem mergulha no chá uma madeleine —um bolinho amanteigado, em forma de concha. Ao levar à boca um gole com migalhas do confeito, o narrador recua à infância e isso dispara o processo de pensamento que compõe os sete volumes de "Em Busca do Tempo Perdido", um dos poucos monumentos indiscutíveis da humanidade.
Neste fim de ano, numa reunião, fui servido de uma madeleine. Empolgado, mordisquei-a e, discretamente, escondi-me num canto para esperar que o bolinho desencadeasse em mim um fluxo de memória como o que assomou Proust. Mas, apesar do esforço, não consegui recuar mais que algumas semanas. Estamos prisioneiros da intolerável atualidade brasileira e só voltaremos a sentir prazer em pensar quando nos livrarmos dela.
Sem nossas limitações, a literatura cria sólidas realidades paralelas. Uma madeleine saída do forno, com sua suave alquimia de farinha, manteiga e ovos, não se compara à de Proust. Nenhuma baleia de verdade será tão colossal quanto a Moby Dick de Herman Melville. E nunca um sabugo de milho parecerá tão terrível quanto o descrito por William Faulkner em "Santuário".
Imagine se, na vida real, Diadorim, por mais valente, poderia se passar por um jagunço entre jagunços sem fazer a barba, sem tomar banho no rio e sem fazer xixi em pé —só mesmo em "Grande Sertão: Veredas". E onde o matuto D’Artagnan aprendeu a esgrimir a ponto de fazer frente aos Três Mosqueteiros? Nem Alexandre Dumas saberia dizer. E por que o fabuloso Jeeves, que poderia ser reitor em Oxford ou presidente da Câmara dos Lordes, sujeitava-se a ser mordomo e lavar as cuecas de um dândi idiota? Porque P. G. Wodehouse o quis assim.
Em breve, espero, não precisaremos de madeleines para buscar o tempo perdido. Ele já estará à nossa volta.