domingo, 19 de dezembro de 2021

Cresce número de brasileiros fora do País; classe média foge da crise e da violência, OESP

 Pablo Pereira e Roberta Jansen, O Estado de S.Paulo

19 de dezembro de 2021 | 05h00

De uma estante cheia de livros, sobraram apenas cinco exemplares. As mais de 50 taças de cristal foram substituídas por três copos de plástico. "Nossa vida toda precisou caber em três caixas e três malas, tivemos de nos desapegar de tudo", conta a jornalista carioca Fernanda Portugal, de 50 anos. Ela, o marido e o filho adolescente deixaram praticamente tudo para trás e embarcaram na quarta-feira para o Canadá – país que não conhecem, mas onde pretendem morar por ao menos dois anos. Pode ser até mais tempo.

Eles não estão sozinhos. O sonho de uma vida melhor no exterior – e fugir do Brasil, marcado por longa crise econômica, violência urbana e fases de descontrole da pandemia – atrai cada vez mais gente. Não são apenas trabalhadores mais simples, como muitos daqueles saídos de Governador Valadares (MG), nem só a fuga de cérebros, dos que vão ocupar um emprego de ponta. São brasileiros de classe média, escolarizados, que cruzam a fronteira em busca de novas chances.

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Migração
Os jornalistas Flavio Pessoa (à esquerda), Fernanda Portugal (à direita) e o filho Arthur (no centro), durante embarque no Aeroporto Santos Dumont, no centro do Rio, com destino ao Canada. Foto: WILTON JUNIOR / ESTADAO

Segundo dados do Ministério das Relações Exteriores, houve alta de 16% no total de brasileiros no exterior entre 2018 e o ano passado: de 3,6 milhões para 4,2 milhões. Em uma década, o número aumentou 36%. Especialistas dizem ser difícil comparar o movimento dos últimos anos com períodos anteriores, mas veem aumento fora da curva.

"Esse movimento nos últimos anos é inédito e, de fato, representa a maior diáspora da história brasileira para os nossos padrões, um país que, historicamente, sempre recebeu imigrantes", avalia Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Levantamento do Colégio Notarial do Brasil (CNB), que reúne os cartórios, indica alta de 67% nos apostilamentos no 2º semestre deste ano. Esse é o serviço de validação internacional de documentos pessoais, escolares e de dupla cidadania requeridos por quem vai morar fora. De junho a novembro, foram cerca de 912 mil apostilamentos, ante 544 mil no mesmo período de 2020.

Se analisar apenas as solicitações de visto para estudos ou abertura de processos de dupla cidadania, o salto é ainda maior: de 299,5 mil no 2º semestre do ano passado para 693 mil no mesmo período deste ano. Para Giselle Oliveira de Barros, presidente do CNB, os dados expõem essa saída de mão de obra mais qualificada.

Sem perspectiva

"Sempre tivemos o sonho de morar fora, mas quando fizemos 50 anos percebemos que ocupávamos cargos abaixo do que já ocupamos antes, ganhando menos do que já ganhamos e sem perspectiva de melhorar", conta o também jornalista Flávio Pessoa, de 53, marido de Fernanda. "Uns meses depois do começo da pandemia, a gente se tocou também do quanto a vida é fugaz e do tanto de tempo que já tínhamos perdido sem realizar esse sonho." 

Com a mudança, acrescenta Fernanda, o casal vê mais chances de garantir boa formação acadêmica e empregabilidade do filho, de 14 anos. Fernanda também mira os estudos: pretende cursar Turismo em uma universidade canadense. Já o marido não tem emprego em vista, mas, garante, está disposto a encarar qualquer desafio no exterior. 

Migração de brasileiros
'Nossa vida toda precisou caber em três caixas e três malas’, diz Fernanda  Foto: WILTON JUNIOR / ESTADAO

Um dos cinco livros que levaram nas malas é O Conto da Ilha Desconhecida, do português José Saramago. "Quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou quando nela estiver. Não o sabes. Se não sais de ti, não chegas a saber quem és", diz um trecho da obra.

Perfis

Consultora especializada em imigração, a advogada Isabel Nardon diz que a reabertura de fronteiras causada pelo avanço da vacinação (agora abalada com a variante Ômicron, mais contagiosa) elevou a procura para Portugal. Segundo ela, o perfil dos que miram a residência lusa é de pessoas com poder aquisitivo: investidores e aposentados que têm como comprovar renda no Brasil, mas temem pelo futuro aqui.

A debandada aparece também no movimento de remessas financeiras. Só na corretora de câmbio B&T, que tem mais de 200 pontos e atua em mais de 180 países, dados apontam aumento da movimentação no exterior. Conforme registros da empresa até outubro, o volume de operações de transferências de moeda de Portugal para o Brasil, por exemplo, mais do que quadruplicou em 2021 ante o ano anterior.

Em alguns casos, facilidades expostas na pandemia também ajudam na mobilidade. Gustavo Da Broi, de 27 anos, chegou a Lisboa em outubro, para fazer mestrado em Direito Bancário e Securitário, com prazo de dois anos. "Estudo e trabalho daqui para o escritório", conta ele, em referência ao escritório de advocacia onde atua, em Porto Alegre.

No caso do jovem, a cidadania ajudou na mudança e a adaptação foi tranquila. O clima de segurança e a qualidade dos serviços de transporte são apontados como diferenciais. "Como gaúcho, só sinto falta é do churrasco", brinca Da Broi.

Professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que estuda migrações, Ana Maria Carneiro vê dois perfis principais. "Se a pessoa vai trabalhar numa entidade, numa universidade, se é empreendedora ou exportadora e se faz parceria de pesquisa, com certeza estará com a situação regularizada", diz. "Por outro lado, pode ter gente qualificada, com graduação, que na literatura é considerada um talento, mas que estaria migrando de forma ilegal e vai atuar em profissões que não demandam a qualificação profissional que tem no Brasil." Segundo ela, parte desse grupo ocupa até postos que não exigem qualificação formal, como os setores de limpeza, transporte ou de alimentos.

Fluxo

O médico Carlos Eduardo Siqueira, professor da Universidade de Massachusetts, de Boston, diz que há migração significativa, mas acredita que os dados do Itamaraty são superestimados. Nos Estados Unidos, pelos dados oficiais, há 1,7 milhão de brasileiros – 360 mil estão em Boston, atrás de Nova York (450 mil) e Miami (410 mil). Siqueira, porém, estima que a comunidade brasileira em Boston não supere 100 mil. "A imigração brasileira para os EUA é contínua, mas não é constante." Para ele, o Brasil viveu fase similar de desalento e migrações na gestão Fernando Collor (1990-1992).

Já para Guilherme Otero, do programa da Organização Internacional para as Migrações das Nações Unidas, os dados do Itamaraty podem estar subestimados. Ele diz que muita gente sai de forma irregular. Ou vai para o exterior para ficar seis meses regulares, como no caso dos EUA, mas não retorna. Além disso, destaca, há brasileiros com dupla cidadania que, quando migram, preferem o direito de usar o passaporte da outra nacionalidade. 

Para Pedro Brites, da FGV, o dinheiro escasso está por trás do êxodo. "A questão econômica é o fator propulsor para qualquer tomada de decisão desse tipo, e o Brasil não atravessa um período exitoso há alguns anos. Isso efetivamente tira a perspectiva de oportunidades para boa parte da população."

As sucessivas crises políticas – agravadas desde a eleição do presidente Jair Bolsonaro, em 2018 – também pesam. "Essa turbulência afasta parte da população de nosso País", afirma Brites, que aponta a falta de segurança pública como outro acelerador de despedidas. 

Instalados

Entre os que trocaram de endereço há mais tempo, muitos dizem não se arrepender. "Estou muito satisfeita", conta a bióloga Bárbara, que abandonou tudo no Rio e foi viver com o marido e as duas crianças em Aveiro, região central de Portugal, no fim de 2017. "Migramos por causa da violência do Rio", afirma. "Larguei tudo, meu trabalho, que eu amo, e me tornei uma migrante", acrescenta ela, que vê a chegada de mais brasileiros. "E muita gente vem usando Portugal como porta de entrada na Europa."

A paraense Suellen Vallandingham, de 26 anos, deixou o calor de Belém para morar em Trondheim, na gelada Noruega. Casada com um cidadão meio americano, meio norueguês, ela foi embora do Brasil no fim de 2018. Hoje, cria a filha de 2 anos nos fiordes do outro lado do mundo – e se vê cada vez mais acompanhada de conterrâneos. "Aqui também tem muitos brasileiros chegando." Pelos dados do Itamaraty, a Noruega abriga 10.858 brasileiros. Somam-se a eles os 323 que vivem na Islândia, também atendidos pela Embaixada do Brasil em Oslo.

Suellen acaba de lançar uma loja de comércio virtual e estuda o complicado idioma norueguês. Para o futuro, quer fazer faculdade, mas não tem planos de voltar à terra natal. "Os primeiros meses foram muito difíceis, mas agora estou bem. Não penso em voltar, não."


Antonio Prata - Outros planos, FSP

 "Vida é o que te acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos". A frase não é do John Lennon, como se crê, mas de um autor obscuro publicado na revista Reader’s Digest em 1957. Décadas depois, Lennon e Yoko a pescaram em algum canto e incluíram na música "Beautiful Boy".

Mesmo não sendo do Lennon, a frase caberia como subtítulo do documentário "Get Back" (Disney +), que retrata os Beatles em janeiro de 1969. Durante as quase nove horas da série, enquanto a banda e uma enorme estrutura de produção fonográfica e audiovisual se ocupam de outros planos, a vida não para de brotar pelas brechas. A disparidade entre o que eles achavam que estava acontecendo e o que de fato acontecia é uma das tantas maravilhas deste que foi, sem querer, o maior reality de todos os tempos.

Ilustração de Adams Carvalho, em 19/12/2021, mostra em tons de rosa, pink e vermelho, os Beatles, com manchas brancas na frente
Adams Carvalho

Imagino o diretor Michael Lindsay-Hogg, o engenheiro de som Glyn Johns e os próprios Fab Four chegando em casa naquelas noites e falando "tá um caos, todo mundo implicando com todo mundo, os prazos estourando, a gente não sabe se tem um disco, se vai fazer show, onde vai ser, a Yoko tá quase morando dentro do bumbo do Ringo, a gente tropeça a toda hora nos hare krishnas do George e o John não lava o cabelo há duas semanas: deu ruim".

Nós, porém, do outro lado da tela e meio século depois, sabemos que daquele furdunço surgiram os discos "Let it be" e "Abbey Road", com algumas das músicas mais bonitas dos Beatles (e, portanto, do mundo), além do histórico último show, na laje da Apple. Mesmo o fim iminente da banda –que no filme parece um passo natural no processo de amadurecimento dos quatro, nem culpa da Yoko nem de ninguém– é um movimento tectônico que nós sentimos claramente e eles apenas vislumbram, atormentados por diabinhos menores.

Um dos mais perdidos é o diretor Michael Lyndsay-Hogg. O cara tinha metido na cabeça que queria filmar um show triunfal à luz de tochas nas ruínas de um anfiteatro romano na costa da Líbia. Em sua obsessão pela penumbra árabe, aquele bebê gigante sempre a fumar charutos não percebeu os holofotes diante do próprio nariz. Num determinado momento, ele reclama: "nós temos muitas horas de material filmado, mas não temos uma história". Não tinham mesmo uma história, tinham umas vinte.

O plot do George, caçula da banda, querendo se afirmar como um igual. O plot do John e da Yoko. O plot do Paul tentando ocupar o papel de líder, após a morte do empresário Brian Epstein. Os mini-plots da composição de cada canção. O plot da Scotland Yard querendo parar o show no telhado, metonímia maravilhosa de um plot muito maior e ainda se desenrolando, entre as cigarras que querem cantar no telhado e as formigas preocupadas com a "perturbação da ordem pública". O plot do fim do maior fenômeno pop da história.

Até Paul, o mais lúcido no recinto, está absorto em questões menores, incomodado com a possibilidade de fazerem "apenas mais um álbum", "apenas mais um show". Refém da juventude e da inventividade dos quatro, achava que tinham de se reinventar sem parar, criando uma nova forma de apresentar as músicas. A existência e o sucesso de "Abbey road" e "Let it be" vêm, ironicamente, do fracasso de Paul em sua empreitada. Ele, frustrado, achava que estava se repetindo, enquanto estava desenterrando ouro.

A ironia escreve torto por linhas certas. Onze anos depois da gravação do documentário e poucos dias após lançar "Double Fantasy", disco com "Beautiful Boy" e a frase que abre o texto, em 1980, a vida aconteceu pro John Lennon, acabando definitivamente com todos os seus planos.


Samuel Pessôa - Há diferenças importantes entre estelionatos eleitorais de FHC e Dilma, FSP

 Na campanha de 2014, a presidente Dilma faltou com a verdade. Ganhou a eleição e não terminou o mandato. Na campanha de 1998, Fernando Henrique Cardoso também faltou com a verdade. Ganhou a eleição e governou quatro anos.

O petismo alega que a assimetria é fruto de preconceito e perseguição da mídia e das elites a um governo progressista que permitiu que pobre andasse de avião.

Há diferenças importantes entre os dois estelionatos eleitorais. A diferença é quantitativa. Em política, meia gravidez é diferente de gravidez completa.

Cédulas de real - Gabriel Cabral - 21.ago.2019/Folhapress

Onde está a diferença de intensidade? Primeiro: a manutenção do câmbio no primeiro mandato de FHC, em que pese o artificialismo, ocorria com os mercados funcionando. Havia custos para o governo em manter aquele regime. Os juros eram muitos mais elevados, e, portanto, o crescimento econômico, mais limitado.

Diferentemente, tanto as pedaladas fiscais e o atraso no reajuste dos preços monitorados quanto a perenização da desoneração da folha de salários, entre tantas outras medidas populistas adotadas em 2014, jogavam a conta para o futuro sem nenhum impacto presente relevante.

Segundo, FHC, percebendo a difícil situação que iria enfrentar, proferiu, em 23 de setembro de 1998, a 11 dias do primeiro turno das eleições, um duro discurso sobre a necessidade de um ajuste fiscal em 1999. Nesse momento, é oportuno assistir a reportagem no jornal da noite da Bandeirantes com a repercussão da fala de FHC. Como seria 2015 se Dilma tivesse se arriscado como FHC se arriscou?

É útil revermos um trecho da fala de FHC: "O principal problema é simples: o Estado não tem sido capaz de viver no limite de seus próprios meios. E por isso não cumpre o seu papel no processo de desenvolvimento brasileiro e fragiliza a nossa economia. Os governos federal, estaduais e municipais têm tido dificuldades em restringir seus gastos totais ao que as suas receitas lhes permitem. Por isso, não atendem apropriadamente a seus cidadãos e sobrecarregam a economia privada. Os governos gastam mais do que ganham por vários motivos. Às vezes, são maus governos e administram o seu dinheiro de forma irresponsável. O fim da inflação tornou essas coisas mais fáceis de serem percebidas. E fez o povo entender com mais clareza o que é um bom governo e o que representa a moralidade na administração do dinheiro público. A busca do equilíbrio nas contas públicas é também uma questão de cidadania".

Terceiro, o ajuste fiscal de FHC se iniciou em 1998, ano da eleição. De acordo com cálculos de meu colega do Ibre Bráulio Borges, houve em 1998 contração fiscal de 0,84 ponto percentual do PIB. Diferentemente, em 2014 houve expansão fiscal de 1,4 ponto do PIB.

Esses três pontos —menor artificialidade da política econômica em 1998 ante 2014, o aviso amplamente noticiado à sociedade e o início da arrumação de casa já em 1998— diferenciam um estelionato do outro. E ajudam a entender o motivo de em um caso não ter ocorrido perda de governabilidade e no outro ter.

A crença em conspirações e inimigos externos nunca foi boa conselheira. Como escreveu FHC no discurso no Itamaraty, "é preciso ter clareza, por outro lado, que existem problemas que são nossos. É sobre estes que eu gostaria de lhes falar hoje".