domingo, 19 de dezembro de 2021

Marilene Felinto - Educação pelo Rio FSP

 O Rio é o de Janeiro —esse lugar-comum (de beleza e violência). Minha primeira viagem pós-lockdown pandêmico foi para o Rio, depois de 15 anos que eu não pisava lá. O ideal seria escrever um romance de costumes sobre o Rio, mas como me falta talento, o romance sai primário, feito redação escolar das séries iniciais.

O título é uma paródia do poema "Educação pela Pedra", do pernambucano João Cabral de Melo Neto. (Comecei a ler no Rio uma biografia dele, que me provocou engulhos na primeira parte, ao tratar, quase como elogio, da oligarquia usineira de Pernambuco, origem de João Cabral, e da qual o poeta se orgulhava.)

Tive engulhos porque as origens de João Cabral batem de frente contra a minha falta de origens naquele mesmo lugar (e o Rio me lembra Recife, o cheiro, o mar e certa geografia...). Claro que isso nada tem a ver com a beleza exata da poesia de Cabral. Ele que, além do mais, era especialista em poemas sobre rios.

A boa biografia —"João Cabral de Melo Neto: Uma Biografia", de Ivan Marques— conta que o poeta veio ao Rio em 1940 pela primeira vez, aos 20 anos de idade, para conhecer, por meio do também poeta Murilo Mendes, o também poeta Carlos Drummond de Andrade. Era outro Rio, mas o mesmo. A educação pelo Rio, de um lado.

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De outro lado, achei o Rio absolutamente mal-educado e agressivo, cidade barulhenta, onde os motoristas buzinam excessivamente e as pessoas falam alto demais nas ruas. Não se trata de o Rio ser pior do que São Paulo, no geral. Mas é diferente (tem sua própria lei, no trânsito e no morro —a falta de lei, na verdade).

Me disseram que minha impressão da falta de educação é porque fiquei em Copacabana, onde a deterioração urbana é mais visível. Tivesse ficado em Ipanema, na Gávea ou no Leblon etc. teria sido outra coisa. Outra coisa: o Rio é uma ditadura de classe. Educação pelo Rio.

Não é que o Rio seja pior do que São Paulo no que se refere à atmosfera de crime e medo —mas, no Rio, o grau de crueldade é mais alto. O Rio é o mais criminal dos estados criminais do Brasil. É lá que se matam mais negros mais livremente, com permissão dos órgãos públicos.

Segundo a Rede de Observatórios de Segurança, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, a polícia do Rio matou, em 2020, 939 negros (contra 153 brancos). Já a polícia de São Paulo, no mesmo ano, matou 488 negros (contra 281 brancos). É a educação pelo Rio, por comparação com o resto.

"São Paulo é mais organizado. Até a pobreza é mais organizada em São Paulo", me disse um taxista do Rio. Taxistas do Rio seriam protagonistas do meu romance de costumes, personagens-chave para uma educação pelo Rio. Assim é que um segundo taxista quis nos vender um sítio em Xerém, Duque de Caxias, Baixada Fluminense.

Ele nos mostrou as fotos, "sítio com piscina, lindo", disse o motorista evangélico, da Assembleia de Deus, "e tudo como posse, sem escritura, porque lá ninguém paga imposto pra governo não. E Xerém é a cidade mais segura do Rio. Não troco Xerém por Leblon, porque aqui vão roubar teu celular, vão te dar tiro. Em Xerém tem milícia? Tem. Mas é milícia que está com os políticos de lá, e então não cobram taxa dos moradores, os políticos não querem isso lá. E se sabem de alguém no tráfico de drogas lá, eles matam na hora. Aquilo é um paraíso".

É o Rio mafioso. Impossível entender a escolha de políticos que o Rio faz: Sérgio Cabral, Witzel, Garotinho são a cara da contravenção, do arbítrio, do racismo, da opressão de classe, da impunidade para a matança generalizada.

O Rio tortura, mata crianças negras sem origem, que roubam passarinhos. Não se pode esquecer que o Rio é o berço do bolsonarismo, a merda em que o país afunda. Em São Paulo, pelo menos se sabe de onde vêm a perversidade e a desfaçatez de um João Doria, por exemplo. O Rio é obscuro-claro, cristão-anticristo.

Minha conclusão é a de que não posso viver no Rio, porque a catástrofe fluminense-carioca é ainda maior do que a minha catástrofe pessoal (de alguém que não fez nada para evitar que seu próprio país caísse na merda em que se encontra). Não fiz nada. O Rio me jogou na cara essa impotência.

O Rio de Janeiro é pedra sem poesia, embora empertigado (com certa razão, porque ali viveram tantos nomes importantes: Manuel Bandeira, Drummond de Andrade, Clarice Lispector, João Cabral). É provinciano: ostenta instituições inúteis, imperiais como a Academia Brasileira de Letras, e se curva à hegemonia nefasta da Rede Globo.

O Rio daria um romance de costumes ruim, fosse eu quem o escrevesse. É que o Rio se acha, uma ditadura de classe maravilhada consigo mesma. Mas o Rio é apenas nossa própria catástrofe nacional escorregando morro abaixo.


sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

De Ulysses a Mendonça, faculdade do interior de SP faz sucesso sob Bolsonaro, FSP

 Cristina Camargo

SÃO PAULO

Bauru, no interior de São Paulo, tem estátua da Havan, trevo com apelido de cafetina, a Eny, e uma réplica da Torre Eiffel em frente ao prédio pioneiro da ITE (Instituição Toledo de Ensino), onde se formaram André Mendonça, que toma posse nesta quinta (16) no STF (Supremo Tribunal Federal), o ministro da Educação, Milton Ribeiro, e a presidente da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), a advogada Cláudia Mansani Queda de Toledo.

Mas qual é a relação da réplica de dez metros de altura com uma das universidades particulares da cidade de 381 mil habitantes?

A explicação é o fundador da antiga ITE, hoje Centro Universitário de Bauru, o educador Antônio Eufrásio de Toledo, admirador do lema da Revolução Francesa, liberdade, igualdade, fraternidade. A torre foi colocada ali quando a instituição, fundada em 1951, completou 25 anos.

Réplica da Torre Eiffel na ITE, em Bauru - iteoficial no Instagram

Mendonça, Ribeiro e Queda não são os únicos nomes famosos do mundo do poder a terem em comum a passagem pelo centro universitário bauruense.

O primeiro diretor da faculdade de direito idealizada por Toledo foi o deputado Ulysses Guimarães, próximo ao fundador. O político, já influente, teria ajudado o amigo nas tratativas burocráticas para a consolidação do curso, onde deu aulas de direito constitucional.

Também foi formado pela ITE o jurista Damásio Evangelista de Jesus, advogado criminalista, autor de mais de 20 livros e fundador do Damásio Educacional, conhecido curso preparatório para carreiras jurídicas. Damásio morreu em 2020.

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Nascido em Cambuí (MG), Toledo era professor, teve jornal e foi preso após fazer oposição ao presidente Getúlio Vargas.

De acordo com a história contada pela família, escolheu Bauru por acaso para o seu pioneirismo universitário. Ele estava a caminho de Ribeirão Preto, a 210 km de distância, para uma palestra, quando conheceu a cidade e decidiu ficar.

A ITE começou com a criação de cursos técnicos, depois vieram as faculdades de direito, educação física, ciências econômicas, ciências contábeis e serviço social.

Hoje oferece também os bacharelados em administração, análise e desenvolvimento de sistemas, ciências aeronáuticas, engenharia de produção, pilotagem profissional de aeronaves e sistemas de informação, todos presenciais.

O curso de educação física não existe mais. O centro universitário possui especializações, mestrado e doutorado. Há também cursos tecnológicos, como gestão hospitalar, logística e marketing, presenciais e a distância.

O curso de direito da instituição tem nota 3 no Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes). No RUF (Ranking Universitário Folha), de 2019, e aparece em 139º lugar. A mensalidade é de R$ 1.200. Os alunos pagam 12 parcelas por ano, sendo que a primeira é considerada a matrícula.

Não há taxa de inscrição para o vestibular, e as provas, agendadas, podem ser presenciais ou online. A universidade aceita também inscrições via Enem, com nota igual ou superior a 450 pontos.

A instituição comemorou a aprovação de André Mendonça para o STF. Além de ex-aluno, formado em 1993, ele é professor do programa de pós-graduação. "É um dos grandes destaques nacionais da ITE e seu celeiro de talentos, que há mais de 70 anos forma campeões", disse, em nota, o centro universitário.

HERDEIROS

Toledo morreu em 1978, aos 77 anos, e, desde então, a ITE passou a ser administrada pelos herdeiros, nem sempre de forma harmoniosa.

Mauro Leite de Toledo, o quarto dos 11 filhos do patriarca, foi secretário-geral da instituição durante 50 anos e, no início dos anos 2000, denunciou familiares ao Ministério Público e à Polícia Federal por fraudes contábeis, pagamentos irregulares e transações imobiliárias suspeitas.

Entre os acusados no depoimento do secretário-geral estava um de seus irmãos, Antônio Eufrásio de Toledo Filho, o Toledinho.

Ex-revendedor de cerveja em um período em que preferiu atuar profissionalmente longe da família Conhecido na cidade pelo perfil boêmio e pela proximidade com o Esporte Clube Noroeste, Toledinho ocupava o cargo de coordenador do conselho gestor da ITE quando as denúncias foram feitas.

Reportagem da Folha de 2002 mostrou as irregularidades denunciadas por Mauro. Recursos da instituição, que gozava de título de filantropia, seriam direcionados a familiares que controlavam o local, incluindo a futura presidente da Capes.

Na época, as denúncias provocaram o indeferimento do pedido de renovação do certificado filantrópico junto ao CNAS (Conselho Nacional de Assistência Social).

Outro filho do fundador, Maurício Leite de Toledo, foi vereador em Bauru (1964-1968) e deputado federal (1971-1974).

Márcio Leite de Toledo, o caçula, teve um destino trágico. Militante da ALN (Ação Libertadora Nacional) durante a ditadura militar (1964-1985), ele foi morto aos 26 anos pela própria organização, com oito tiros, em São Paulo.

Márcio havia treinado em Cuba para a guerrilha e foi assassinado pouco depois de voltar ao Brasil, em 1971, acusado de displicência ao participar de uma ação armada, após um sumiço de 40 dias.

Ele fazia críticas aos dirigentes da organização e defendia o recuo da luta armada, depois das mortes dos líderes Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira.

Em 2007, a família enfrentou mais um drama. Aos 39 anos, o diretor administrativo da ITE, Edson Márcio de Toledo Mesquita, neto do fundador, morreu em acidente de carro na rodovia que liga Bauru a Jaú. Tinha o nome do tio guerrilheiro e planos de dar continuidade ao legado do avô.

Os Toledo criaram outras unidades universitárias em cidades do interior. Alguns desses centros universitários ainda são administrados por integrantes da família, como em Botucatu e Presidente Prudente.

Em 2019, a Yduqs, antiga Estácio, comprou a UniToledo, também criada pela família, em Araçatuba.

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A presidente da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), Cláudia Queda de Toledo, durante entrevista em seu gabinete em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress

Cláudia Toledo, a presidente da Capes, era reitora do centro universitário fundado pelo avô de seu marido em Bauru quando foi indicada pelo ministro da Educação para o cargo.

Aos 51 anos, mãe de duas jovens e filha de um ex-vereador, a advogada enfrenta críticas e a renúncia de mais de cem pesquisadores ligados a processos de avaliação de pós-graduação.

Os pesquisadores criticam supostas pressões para acelerar a abertura de novos cursos e aprovar ofertas a distância, além de apontarem descaso na avaliação dos programas.

Em entrevista à Folha, ela chamou as renúncias de insurgências. "Sou a quarta mulher [à frente] da Capes em 70 anos. Os números gritam o preconceito, a misoginia", disse.

A atual reitora do Centro Universitário de Bauru, Roberta Cristina Paganini Toledo, neta do fundador, foi procurada para falar sobre a instituição, mas não pôde falar por motivos pessoais. O marido dela, Paulo Lew, também professor, faz postagens anti-Bolsonaro nas redes sociais.