A voz baixa que veio acompanhada da fala pausada fez o operador de som aumentar o volume em um restaurante da capital paulista. Dr. Carlos disse “boa tarde” e, no segundo seguinte, o burburinho ao redor cessou. Ouvia-se apenas o empresário e os pratos sendo empilhados na cozinha.
Era dezembro de 2019, a última aparição pública de Carlos Alberto de Oliveira Andrade.
O empresário, que enfim realizara o sonho de ter uma montadora para chamar de sua, reuniu a imprensa para anunciar um programa de aluguel de carros da Caoa Chery.
A plateia estava pouco interessada no assunto. O que todos queriam saber é se o dr. Carlos iria confirmar a compra da fábrica da Ford em São Bernardo do Campo (Grande São Paulo). Seria o passo mais ousado entre tantos outros passos ousados da sua história.
O primeiro foi dado no fim dos anos 1970, quando o jovem cirurgião de Campina Grande (PB) —daí vem o “doutor”— abriu sua primeira concessionária.
Dr. Carlos contava que a ideia surgiu a partir de um calote: ele comprou um Ford Landau, mas não recebeu. A empresa faliu e o sedã de luxo virou um papel sem valor.
O doutor então negociou a compra da loja. Em julho de 1979, pagou algo entre 4 e 5 milhões de cruzeiros —e afirmava ter descontado o valor do carro no negócio.
A voz baixa e pausada deve ter se avolumado durante a negociação. Dr. Carlos era incisivo ao demonstrar insatisfação, e o mesmo ímpeto que tinha para expandir seus negócios era usado nos distratos.
Foi assim com a Renault. O empresário já tinha uma rede de concessionárias consolidada quando se tornou importador da marca francesa, em 1992.
“Eu criei a empresa CA de Oliveira Andrade, mas o pessoal da Renault abreviou para Caoa”, disse à Folha em entrevista publicada em dezembro de 2007.
Após um início harmonioso, a disputa pela representação da marca foi parar na Justiça. Em 1995, o dono do grupo Caoa pediu indenização à montadora francesa para deixar de ser representante da marca —que se preparava para assumir as operações no Brasil.
O empresário afirmava que havia um contrato prévio “não reduzido a termo escrito". Esse acordo verbal, segundo o doutor, não impunha prazos para o fim da parceria.
A disputa durou até 1998. Às vésperas de iniciar a produção na fábrica de São José dos Pinhais (PR), a separação foi confirmada e a Renault teve de indenizar o grupo Caoa.
Naquele ano, a empresa assumiu as operações da japonesa Subaru no Brasil. O passo mais importante viria em 1999, quando a sul-coreana Hyundai foi incorporada ao portfólio.
A marca estava desacreditada no mercado, após idas e vindas. Até então, importadores haviam trazido carros pouco interessantes tanto em estilo como em mecânica. Mas uma revolução industrial ocorria na Coreia do Sul, e o dr. Carlos chegou na hora certa.
A marca cresceu nos anos 2000 com sonhos de consumo a baixo custo diante dos concorrentes. Tucson, Santa Fé e Azera tornaram-se figurinhas repetidas nas ruas, sempre pintados de preto ou prata.
Em 2007, teve início a montagem nacional, resultado de um investimento de R$ 1,2 bilhão.
Benefícios concedidos no estado de Goiás levaram o negócio para a cidade de Anápolis. A produção teve início com o caminhãozinho HR, cujas peças vinham da Coreia do Sul.
A partir de então, dr. Carlos reduziu as aparições públicas. As empresas ganharam novos rostos, mas nenhuma decisão dos diretores-executivos era tomada sem a aprovação do fundador e presidente do conselho.
Era o "doutor" quem definia os investimentos vultosos em publicidade, com propagandas que não raramente paravam no Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária).
Entre verdades, exageros e bravatas, a Hyundai se tornou a marca mais admirada e inovadora do mundo —ao menos nos comerciais.
Mas a história se repetiu: se no passado a Renault brigou na Justiça para tirar a representação das mãos do grupo Caoa, chegou a vez de os sul-coreanos fazerem o mesmo.
A disputa tornou-se pública em 2012, quando foi lançado o Hyundai HB20, produzido em Piracicaba (interior de São Paulo). A fábrica não tinha qualquer relação com o antigo importador: era 100% administrada pela matriz. Mas a cizânia se manifestou, de fato, na rede concessionária.
As lojas de importados e modelos produzidos em Anápolis não poderiam vender os novos carros nacionais nem oferecer serviços de oficina. Uma confusão e tanto para o consumidor.
Com mais um fim de relacionamento no horizonte, chegou a hora de o dr. Carlos se voltar para o mercado chinês.
A claudicante Chery —que, em agosto de 2014, começara a produzir em Jacareí (interior de São Paulo) e via o negócio naufragar em meio a brigas com o sindicato local e a crise econômica—, tornou-se o caminho para o sonho maior.
Em 2017, o grupo Caoa assumiu 50% das operações da montadora chinesa. Surgia a Caoa Chery.
Engenheiros de longa história na Ford foram contratados para adequar os carros ao gosto do brasileiro. A propaganda seguiu o padrão e a voz que fez a fama da Hyundai. Nos comerciais de TV, o locutor Ferreira Martins alardeava “a melhor tecnologia do mundo.”
Os laços do grupo Caoa com a Ford pareciam prestes a se consolidar de vez com a iminência de adquirir a fábrica de São Bernardo. Houve até um evento constrangedor promovido pelo governador de São Paulo, João Doria (PSDB), em setembro de 2019. Diante de executivos da Ford e do doutor, foi anunciado um plano de compra em duas etapas.
No almoço realizado três meses após aquela reunião, dr. Carlos disse que a compra havia se tornado “uma esperança remota”.
Passados sete meses, a fábrica foi negociada com a Construtora São José. Em janeiro deste ano, a Ford anunciou o fechamento das outras unidades de produção no Brasil e, mais uma vez, o grupo Caoa surgiu como interessado para adquirir a planta de Camaçari (BA).
Dr. Carlos faleceu neste sábado (14) aos 77 anos, antes do desfecho dessa nova história. Mas viveu para vencer mais uma briga. Em julho, a Justiça decidiu que sua empresa poderá importar modelos Hyundai até 2028.
Em nota, o grupo Caoa disse que “dr. Carlos estava com a saúde debilitada por conta de um tratamento de saúde e faleceu durante o sono ao lado de sua esposa e filhos.”