segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Bom de briga, dono da Caoa marcou história de Ford, Renault, Hyundai e Chery, FSP

 

SÃO PAULO

A voz baixa que veio acompanhada da fala pausada fez o operador de som aumentar o volume em um restaurante da capital paulista. Dr. Carlos disse “boa tarde” e, no segundo seguinte, o burburinho ao redor cessou. Ouvia-se apenas o empresário e os pratos sendo empilhados na cozinha.

Era dezembro de 2019, a última aparição pública de Carlos Alberto de Oliveira Andrade.

O empresário, que enfim realizara o sonho de ter uma montadora para chamar de sua, reuniu a imprensa para anunciar um programa de aluguel de carros da Caoa Chery.

A plateia estava pouco interessada no assunto. O que todos queriam saber é se o dr. Carlos iria confirmar a compra da fábrica da Ford em São Bernardo do Campo (Grande São Paulo). Seria o passo mais ousado entre tantos outros passos ousados da sua história.

Homem branco de terno azul
Carlos Alberto de Oliveira Andrade, fundador da Caoa, em foto de dezembro de 2017: grupo, cujo nome leva suas inicias, foi fundado em 1979 - Divulgação

O primeiro foi dado no fim dos anos 1970, quando o jovem cirurgião de Campina Grande (PB) —daí vem o “doutor”— abriu sua primeira concessionária.

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Dr. Carlos contava que a ideia surgiu a partir de um calote: ele comprou um Ford Landau, mas não recebeu. A empresa faliu e o sedã de luxo virou um papel sem valor.

O doutor então negociou a compra da loja. Em julho de 1979, pagou algo entre 4 e 5 milhões de cruzeiros —e afirmava ter descontado o valor do carro no negócio.

A voz baixa e pausada deve ter se avolumado durante a negociação. Dr. Carlos era incisivo ao demonstrar insatisfação, e o mesmo ímpeto que tinha para expandir seus negócios era usado nos distratos.

Foi assim com a Renault. O empresário já tinha uma rede de concessionárias consolidada quando se tornou importador da marca francesa, em 1992.

“Eu criei a empresa CA de Oliveira Andrade, mas o pessoal da Renault abreviou para Caoa”, disse à Folha em entrevista publicada em dezembro de 2007.

Após um início harmonioso, a disputa pela representação da marca foi parar na Justiça. Em 1995, o dono do grupo Caoa pediu indenização à montadora francesa para deixar de ser representante da marca —que se preparava para assumir as operações no Brasil.

O empresário afirmava que havia um contrato prévio “não reduzido a termo escrito". Esse acordo verbal, segundo o doutor, não impunha prazos para o fim da parceria.

A disputa durou até 1998. Às vésperas de iniciar a produção na fábrica de São José dos Pinhais (PR), a separação foi confirmada e a Renault teve de indenizar o grupo Caoa.

Naquele ano, a empresa assumiu as operações da japonesa Subaru no Brasil. O passo mais importante viria em 1999, quando a sul-coreana Hyundai foi incorporada ao portfólio.

A marca estava desacreditada no mercado, após idas e vindas. Até então, importadores haviam trazido carros pouco interessantes tanto em estilo como em mecânica. Mas uma revolução industrial ocorria na Coreia do Sul, e o dr. Carlos chegou na hora certa.

A marca cresceu nos anos 2000 com sonhos de consumo a baixo custo diante dos concorrentes. Tucson, Santa Fé e Azera tornaram-se figurinhas repetidas nas ruas, sempre pintados de preto ou prata.

Em 2007, teve início a montagem nacional, resultado de um investimento de R$ 1,2 bilhão.

Benefícios concedidos no estado de Goiás levaram o negócio para a cidade de Anápolis. A produção teve início com o caminhãozinho HR, cujas peças vinham da Coreia do Sul.

A partir de então, dr. Carlos reduziu as aparições públicas. As empresas ganharam novos rostos, mas nenhuma decisão dos diretores-executivos era tomada sem a aprovação do fundador e presidente do conselho.

Era o "doutor" quem definia os investimentos vultosos em publicidade, com propagandas que não raramente paravam no Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária).

Entre verdades, exageros e bravatas, a Hyundai se tornou a marca mais admirada e inovadora do mundo —ao menos nos comerciais.

Mas a história se repetiu: se no passado a Renault brigou na Justiça para tirar a representação das mãos do grupo Caoa, chegou a vez de os sul-coreanos fazerem o mesmo.

A disputa tornou-se pública em 2012, quando foi lançado o Hyundai HB20, produzido em Piracicaba (interior de São Paulo). A fábrica não tinha qualquer relação com o antigo importador: era 100% administrada pela matriz. Mas a cizânia se manifestou, de fato, na rede concessionária.

As lojas de importados e modelos produzidos em Anápolis não poderiam vender os novos carros nacionais nem oferecer serviços de oficina. Uma confusão e tanto para o consumidor.

Com mais um fim de relacionamento no horizonte, chegou a hora de o dr. Carlos se voltar para o mercado chinês.

A claudicante Chery —que, em agosto de 2014, começara a produzir em Jacareí (interior de São Paulo) e via o negócio naufragar em meio a brigas com o sindicato local e a crise econômica—, tornou-se o caminho para o sonho maior.

Em 2017, o grupo Caoa assumiu 50% das operações da montadora chinesa. Surgia a Caoa Chery.

Engenheiros de longa história na Ford foram contratados para adequar os carros ao gosto do brasileiro. A propaganda seguiu o padrão e a voz que fez a fama da Hyundai. Nos comerciais de TV, o locutor Ferreira Martins alardeava “a melhor tecnologia do mundo.”

Os laços do grupo Caoa com a Ford pareciam prestes a se consolidar de vez com a iminência de adquirir a fábrica de São Bernardo. Houve até um evento constrangedor promovido pelo governador de São Paulo, João Doria (PSDB), em setembro de 2019. Diante de executivos da Ford e do doutor, foi anunciado um plano de compra em duas etapas.

No almoço realizado três meses após aquela reunião, dr. Carlos disse que a compra havia se tornado “uma esperança remota”.

Passados sete meses, a fábrica foi negociada com a Construtora São José. Em janeiro deste ano, a Ford anunciou o fechamento das outras unidades de produção no Brasil e, mais uma vez, o grupo Caoa surgiu como interessado para adquirir a planta de Camaçari (BA).

Dr. Carlos faleceu neste sábado (14) aos 77 anos, antes do desfecho dessa nova história. Mas viveu para vencer mais uma briga. Em julho, a Justiça decidiu que sua empresa poderá importar modelos Hyundai até 2028.

Em nota, o grupo Caoa disse que “dr. Carlos estava com a saúde debilitada por conta de um tratamento de saúde e faleceu durante o sono ao lado de sua esposa e filhos.”


'Nova Belo Monte', Ferrogrão mobiliza ativistas e obriga governo a reação, FSP

 Fábio Zanini

SÃO PAULO

Dez anos após a batalha contra a usina hidrelétrica de Belo Monte (PA), movimentos ambientais, indígenas e de esquerda repetem o roteiro com relação a uma nova obra monumental na região Amazônica, a Ferrogrão.

A crescente mobilização em oposição ao projeto, dentro e fora do país, provocou um contra-ataque do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), que tem buscado dar um verniz “verde” à ferrovia.

Com cerca de 1.000 km de extensão e um custo orçado em R$ 20 bilhões, a obra escoaria grãos, sobretudo soja e milho, de uma das principais regiões produtoras do país, o Mato Grosso, pelo chamado Arco Norte, na Amazônia. Teria uma ponta em Sinop (MT) e outra no porto de Miritituba (PA), no rio Tapajós.

Carretas carregadas com soja em fila na BR-163, na divisa de Mato Grosso e Pará - Zanone Fraissat - 19.fev.2020/Folhapress

O fato de atravessar áreas ambientais e margear terras indígenas tornou o projeto uma nova causa célebre para ativistas.

“O projeto da Ferrogrão só pode ser comparado a catástrofes humanitárias e ambientais como a rodovia Transamazônica e a usina hidrelétrica de Belo Monte”, diz carta enviada pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) em julho à Internacional Progressista (IP), entidade que reúne lideranças globais de esquerda.

Entre os apoiadores da IP estão o senador americano Bernie Sanders, o ex-ministro das Finanças da Grécia Yanis Varoufakis e o ex-líder do Partido Trabalhista britânico Jeremy Corbyn.

No próximo dia 17, uma comitiva da entidade global virá ao Brasil para encontros com movimentos sociais e partidos políticos, e a mobilização contra a Ferrogrão será um dos pontos na agenda. A delegação terá 12 integrantes, incluindo congressistas e ativistas de Europa e EUA.

Uma das preocupações dos ativistas é a tentativa do governo de apresentar o projeto como ambientalmente sustentável, o que o coordenador-geral da organização, o economista americano David Adler, chamou de “lavagem cerebral verde” em entrevista à Folha no mês passado.

O governo vem se mexendo para tentar melhorar a imagem de suas obras, Ferrogrão inclusive.

Uma das iniciativas foi a assinatura de um memorando de entendimento pelo Ministério da Infraestrutura com a Climate Bonds Initiative (CBI), organização britânica especializada na certificação de projetos e operações financeiras "verdes", com o intuito de orientar investidores. Não há custo para o governo na parceria, assinada em setembro de 2019 e sem prazo para ser encerrada.

“Se eu vou fazer uma ferrovia na Amazônia, preciso passar segurança para os investidores, principalmente no quesito imagem. Queremos ser o estado da arte em termos de estruturação verde, governança ambiental, monitoramento de processos, recuperação de áreas degradadas, travessia de fauna”, diz o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas.

De acordo com a CBI, o acordo com o ministério envolve o compartilhamento de informações sobre "critérios verdes e de melhores práticas internacionais para o acesso aos mercados de finanças sustentáveis".

Mas o trabalho específico relacionado à Ferrogrão ainda não se iniciou, de acordo com Leisa Souza, head de América Latina da CBI. "A Climate Bonds não avaliou o pedido de certificação das operações financeiras para construção da Ferrogrão até o momento", afirma.

Entre os argumentos que o ministério apresenta está a promessa de retirar 1 milhão de toneladas de gás carbônico da atmosfera, graças à redução esperada de 90% no fluxo de caminhões na BR-163, que hoje leva a soja mato-grossense para o porto no Tapajós.

“O Arco Norte já é uma realidade. Em muito pouco tempo vai se impor a duplicação da BR, pois são todo dia 2.500 [caminhões] bitrens com carga para o porto, e mais 2.500 voltando. Com a Ferrogrão essa duplicação fica completamente descartada”, afirma o ministro.

Além disso, argumenta Tarcísio, a ferrovia, longe de ser um novo fator de desmatamento, atuará como uma espécie de barreira ecológica.

“Ela roda a 40 metros em média do eixo da rodovia, que já é uma região bem antropizada [modificada por ação do homem]. Vai funcionar como barreira verde, contendo uma pressão fundiária que é mais inerente à rodovia do que à ferrovia”, diz.

A pregação ambiental do governo até agora tem sido insuficiente para fazer o projeto deslanchar. Em março, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, suspendeu em liminar uma lei do governo Michel Temer que alterava os limites da Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, para viabilizar a passagem da Ferrogrão.

Com isso, o traçado da obra segue incerto, embora o ministério diga que o contato com a área da floresta seja mínimo.

Em outra frente, o Ministério Público Federal argumenta junto ao TCU (Tribunal de Contas da União) que não houve consulta prévia a povos indígenas sobre a obra, como manda convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho).

Até o momento, a resistência de tribos da região sul do Pará tem sido intensa. “Não é só uma ferrovia, é um projeto que representa a morte para nós. A gente sempre vai ser contra esse tipo de coisa”, diz Alessandra Munduruku, vice-coordenadora da Federação dos Povos Indígenas do Pará.

Moradora de Itaituba (PA), na margem do Tapajós, ela diz que a ferrovia acelerará o surgimento de novas áreas de plantio de soja e o adensamento urbano, processos já em curso.

“Estão cada vez mais nos espremendo. Onde eu moro, a gente tem que ir bem longe para pescar. A cidade cresceu tanto que não temos mais de onde tirar palha [para as casas nas aldeias]”, afirma.

Doto Takak-Ire, do Instituto Kabu, que representa 12 aldeias na região de Novo Progresso (PA), diz que os indígenas não se opõem à obra em si, mas à forma como está sendo executada.

“A gente não é contra a obra, nem contra o desenvolvimento do Brasil. A gente é contra a violação dos direitos”, afirma ele.

Segundo Doto, é fundamental haver um amplo processo de consulta aos povos indígenas, que não será resolvido apenas com algumas audiências públicas promovidas pelo governo.

“Estão confundindo audiência publica com consulta”, afirma ele, que é da etnia caiapó, com cerca de 2.700 pessoas na região.

O ministério diz que o traçado da ferrovia não resvala em áreas indígenas, mas Doto questiona essa afirmação. Segundo ele, há quatro terras indígenas na área de influência da obra, que serão afetadas pelo aumento no cultivo de soja: Capoto/Jarina, Panará, Mekragnot e Baú.

Para o ministro Tarcísio, os ativistas ambientais e indígenas estão se portando como linha auxiliar de interesses comerciais contrários à ferrovia.

O principal, como mostrou a Folha, é a oposição feita pela Rumo Logística, que usa uma rota alternativa para escoar os grãos, em direção ao sul. Ela pressiona o governo pela autorização para expandir sua malha de Rondonópolis (MT), onde já atua, até Lucas do Rio Verde (MT), para transportar a produção do estado até o porto de Santos (SP).

“Ativistas, até por boa fé ou desconhecimento, acabam atuando em defesa desses interesses comerciais. Tenho certeza de que nenhum deles conhece a região, conhece a BR-163, conhece o projeto da Ferrogrão”, declara o ministro.

Outra batalha para a qual o governo já se prepara é o possível uso da Ferrogrão na campanha eleitoral do ano que vem, sobretudo pela candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Para isso, a resposta está pronta: o projeto era defendido também pelo PT, e chegou a constar de uma versão do PIL (Programa de Investimentos em Logística), anunciado pelo governo Dilma Rousseff, em 2015. Mas nunca foi adiante.


A imagem da polícia, editorial FSP

 Com meros dois meses em uso experimental, é cedo para um balanço da afixação de câmeras “grava-tudo” no uniforme de policiais militares paulistas. Ainda assim, a redução na letalidade do patrulhamento suscita justificado otimismo.

Em comparação a julho de 2020, o mês passado registrou 40% menos mortes resultantes de intervenções da PM de São Paulo. Houve 25 óbitos, ante 42 no período anterior, marca atrás somente de junho de 2021, com 22 vítimas.

O período de retração nas ocorrências fatais coincidiu com o início do experimento de gravação de imagens durante o serviço dos PMs. Mesmo não sendo possível afirmar com certeza que o recuo se deveu à contenção induzida pelo aparelho, tal hipótese ganha força.

Policiais militares matam demais no Brasil. Em 2020 foram 6.416 suspeitos abatidos, 78% deles negros. É o triplo da letalidade policial registrada em 2013 e seis vezes o número de vítimas nos EUA (com população 60% maior e violência policial bem acima da observada em nações europeias).

Medidas para minimizar a carnificina são bem-vindas. A PM paulista vai no bom caminho ao aliar treinamento com equipamentos para aumentar a eficiência policial.

Assim ocorre com a disseminação de armamento não letal, como as armas de incapacitação neuromuscular (choque); um total de 3.750 delas já foram adquiridas e outras 3.125 estariam em vista. Das 270 ocorrências em que foram empregadas neste ano, até julho, 7 resultaram em mortes e 4 em ferimentos de agentes.

Para defensores usuais da truculência policial, o emprego de câmeras poderá inibir o policiamento ostensivo e reduzir sua capacidade de evitar crimes. Não é o que revelam estatísticas: em junho, com a menor quantidade de mortes, observou-se aumento de 12% nas prisões em flagrante.

A diminuição da letalidade soa ainda mais auspiciosa quando se toma em conta que o experimento com as primeiras 3.000 câmeras ocorre em apenas 18 batalhões paulistanos. Há planos de contratar mais 7.000 e estender o programa para toda a capital e Grande São Paulo em 2022.

Avaliação mais sólida da medida, por certo, só poderá ser traçada com dados acumulados ao longo de um período maior. Até lá, há que elogiar a iniciativa —protetora da reputação profissional dos policiais— e esperar que se sustente a colheita de frutos civilizatórios.

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